“O que é um vale? Vale muitas respostas. Se você estiver em um grande centro, certamente ouvirá ‘qual vale você quer? Transporte ou alimentação?’ Aqui neste meu lugar, entendo que meu vale, além de alimentar, transporta-me para tantas dimensões”, assim pensava o pequeno Francisco, que vivia em cima das pedras assoberbado com a beleza do sol se pondo entre os seios das montanhas. Depois que descobriu que mulher também tem seios, ele se perguntava… “Será que as montanhas usam sutiã?” Coisas de Fran…ciscando as ideias. Meu Deus, cada pergunta! Se as montanhas usam sutiã! “Mas se o sutiã sustenta os seios da mãe terra que amamenta seus tantos filhos, eu não seio… Se você sabe, pode me dizer? Qual sutiã sustenta o seio das montanhas, da terra como um todo?” Criança tem cada ideia que… onde se viu tal descalabro?
Esse menino tinha sempre um olhar diferente sobre o mesmo olhar. Já viu isso, alguém olhar para a mesma coisa que o outro olha, ver outra coisa, como se a vida fosse composta por uma grande tela abstrata? Para ele não existia arte concreta. A poesia completa, costumava assim dizer, depois que cresceu um pouco, “o que mais me admira em uma orquestra é a capacidade de manter uma fila…harmônica”. Pió que, quanto mais crescia mais “piorava” sua forma de ver a vida.
Um dia, em uma conversa com um amigo, nas tantas elucubrações a respeito da vida, de seu jeito peculiar de enxergar a dinâmica existencial, seu amigo meio intrigado disse:
– Tudo bem, Francisco, eu vejo o mundo pela minha ótica!
– Que bacana! – retrucou Francisco – Percebi que todos aqueles que olham o mundo por uma ótica, um oculista, tem desajustes na visão. Agora tem quatro olhos e enxerga menos, tem lente de contato, menos tato. Não, por favor, nada contra! Estou falando de uma ótica metafórica, para dizer que um par de só olhar não é capaz de enxergar o Mundo. Precisamos do olhar de um terceiro, ou de um terceiro olho.
– Você quer dizer que não consegue enxergar a totalidade de uma verdade?
– Não, não é isso! Não existem verdades inteiras, existem cacos de verdades. Você juntando sua percepção com a minha, vamos construindo um mosaico infinito, uma tela gigante, que a toda hora você pode trocar o pedaço que você colocou, porque nossas verdades mudam com o tempo, e coisa boa é rir de si mesmo.
– Como assim Fran…ciscou minhas ideias com essas suas analogias? Meu Deus, falar com você é um aprendizado infinito.
– Não! Por favor, não é isso! Falar com o mosaico da vida que é um aprendizado infinito. A vida é maior que nós. Quando queremos ser maiores que a vida em si, maior que a vida do meu semelhante, eu entro em dissonância com o ritmo habitual da vida. Quando chegamos perto de uma colmeia, muitos saem correndo, com medo das abelhas. Não é assim? Nossos pais aprenderam de uma forma e repassam esse medo das abelhas, mas quando chego perto delas entro em ressonância com toda sua musicalidade. Você sabia que as abelhas juntas cantam Om, o mantra do universo? Nossa, é lindo! Ainda mais que elas são extremamente organizadas. Sem elas a vida está completamente ameaçada, pois sem polinização não há vida.
– Mas que belo, nem havia me apercebido destas tantas coisas. Então fale mais, Francisco?
– Assim como as abelhas, o oceano também canta Om, o vento quando sopra as cabeleiras da reserva de Campinho no Taboão, balançando a barba de velho do Jequitibá do Grumarim também canta Om, todos vibram em uma mesma frequência, o ritmo de Gaia. Então aprendemos a ter medo das abelhas, não é mesmo? Sem se dar conta que além de todo bem que fazem ao planeta, ainda produzem mel, própolis, geleia real, cera, enfim, tem muita coisa que precisamos desaprender, trocar conhe…cimento que é frio e rígido, por sabedoria que é flexível e aquece.
– Mas onde você aprende todas essas coisas? Como você busca estes conhecimentos, ou melhor, sabedoria?
– Onde você imagina?! Na natureza, é claro! Andando pelas encostas e cachoeiras da Serra do Caparaó, ouvindo as coisas do mundo das plantas, dos bichos, dos seres escondidos, de toda divindade que existe em tudo e em todos. Somos de fato todos irmãos, amo você como amo uma formiga, até porque elas vieram muito antes de nós e possuem sabedorias infindas, devemos reverenciá-las. Não podemos inter…ferir na dinâmica da vida, neste grande balé onde somos chamados para compor esta sinfonia.
– Mas isso me parece um pensamento alienante. É muito bonito, muito romântico, muita poesia para meu gosto.
– De fato, meu irmão, se olharmos dentro de um contexto da normose temos que concordar com você, não temos tempo a perder, porque nascemos para ser transformados em massa de manobra de pensamento dominante. Na verdade, mantivemos por muito tempo o foco na mente. Como centro de tudo! Endeusamento da intelectuidade, das capacidades cognitivas: “penso, logo existo”. Vou parafrasear um poeta: “o sabor da vida está no sentir, o mundo está cheio de entendidos, e tão sem sentido”. Há muito este sistema está se desmoronando, agora é o tempo do sentir, porque de fato só as coisas que sentimos fazem sentido. Quando paramos para conversar com pessoas amadas, verificamos que o que fica são aqueles momentos que nada custaram. Vivemos para a necessidade quando o que de fato resiste ao tempo é a gratuidade. O banho na cachoeira do Cruzeiro, a pesca de cascudo nas barrancas do Rio São João, o canto sublime dos pássaros ao alvorecer no quintal de Tio Victor Mariano ali no Córrego São Felipe, o cheiro da broa de melado na casa de Dona Fia em São Gonçalo, o torresmo na casa de Dona Maria e seu Zé Lima na Pedra Menina-Chave, o perfume do estrume passado nas casas de chão batido onde ainda se registra o pulsar de muitas histórias. Algo que vem sendo tolhido e interrompido, em nome de um dito progresso, que não respeita nossas memórias, nosso contexto, nossa história. Nossa sala-de-estar vive cheia de títulos e diplomas dependurados a serem corroídos pelas traças do tempo. Precisamos com urgência falar com as universidades para incluir nas aulas de arquitetura projetos de construção de salas de SER, espaço primoroso de nossa existência. Quem não tem orgulho de onde veio, não chega a lugar algum.
Neste momento, os olhos do amigo estavam translúcidos, tomados por emoções inenarráveis, como se no ritmo das palavras ele pudesse ser levado a toda essa mágica paisagem, como talvez esteja neste momento o seu olhar marejado, porque lá em um passado talvez seu pai nem tenha tido a sensibilidade para dizer “te amo”, mas descascava uma laranja bahia, furava nela um buraquinho, espremia um pouco porque as mãos da criança são frágeis, entregava a ele, e ali estava escrito “amor”. Ou sua mãe tirava a rapa de angu da panela e recheava com aquele feijão amassado a soquete como se fosse um pastel, ali também estava impresso “amor”.
– Baseado em que você defende essa sua tese? – interrogou o amigo – Essas suas afirmações tão convincentes!
– Não, meu amigo! – respondeu Francisco – Não tenho nenhuma tese, não defendo nenhuma teoria. Você já viu câncer devastar as pessoas em tantos órgãos? Quantos com esta doença no cérebro? Você já viu algum relato de câncer no coração? A resposta é NÃO! Por que não? Porque o coração é o centro do amor. Por mais que queiram nos fazer desacreditarmos de nós mesmos, esta fagulha de vida está acesa. É a partir deste centro que aprendi a amar minha terra, meu querido município de Espera Feliz, encrustado nas montanhas do Caparaó, as pessoas que aqui nasceram ou o escolheram como pátria mãe. Destruindo nossas paisagens, destruímos nosso patrimônio, que não se mede em valores monetários. Qual tela pintará o artista? De qual paisagem falará o poeta?
– Verdade, Francisco, um olhar não basta para ver tanta beleza.
– Saber que onde está o problema está a solução, que não devemos perder mais tempo com sectarismos, com tudo aquilo que nos divide, porque tudo isso é vontade de um sistema que não permite que ampliemos nossa capacidade de “sentir o que se está sentindo”, como disse o gênio Albert Einstein. Sentir o sabor dos alimentos enquanto se come, não o da foto que vai postar no Instagram; sentir a dor do desamor naquele momento e deixar se esvair. Estar sempre presente naquilo que fazemos, acolher todo nosso passado, sem se opor, sem oferecer resistência, porque a maior força da resistência é a resiliência, a flexibilidade. O bambu nos mostra isso, pois sabe que o vento é maior que ele, por isso se entrega, beija o chão e se eleva as alturas; o vento passa, ele permanece. Enquanto as grandes e potentes árvores não reverenciam, elas são quebradas e destroçadas ao meio. Saia de suas crenças religiosas, ideológicas, desça de suas santas verdades. Qualquer tentativa de explicar o sagrado é em si um grande fracasso, uma falácia, rompantes de ego. Porque aquilo que é divino não se explica. Como você explica a composição de Mozart, Beethoven, Vivaldi, as telas de Da Vinci, ou o fazer artístico de Fabiana Natalino, com as cores da terra, extraindo do “solo” de Espera Feliz a beleza expressa em sua arte.
E assim Francisco comoveu seu amigo, traduzindo em palavras seu olhar particular sobre o mundo. Pois acreditava que um lugar é feito de rostos e paisagens, e na paisagem de cada rosto aprendeu a ver a natureza de sua essência, na beleza estampada reconhece o bordado onde cada rosto reflete um ponto nessa intrínseca e magnifica rede de mistérios: a da Pedra Menina que, com a magia do deus Rudá, foi transformada em pedra. Mas hoje, pensava Francisco, vamos transformando pedras em gente, pois esta é a teoria da evolução, como o rosto de Cristo esculpido na silhueta da Serra de Caparaó, onde aprendemos a ver o sagrado no mistério que tece nos fios do invisível nossas telas imaginárias, onde, de certo, um olhar não basta.
SOBRE O AUTOR
Amauri Adolfo da Silva nasceu no dia 13 de fevereiro de 1966 na comunidade do Cruzeiro, zona rural de Espera Feliz-MG. Casado com Vera e pai de Sabrina e Letícia, além de agricultor e poeta, é professor/monitor em Homeopatia e Terapias Holísticas pela Universidade Federal de Viçosa. Divide seu tempo de trabalho entre as cidades de Espera Feliz e Guarapari, tendo também atuado no estado de Pernambuco. Assim, amplia seu olhar sobre o mundo a partir do bucólico lugar onde nasceu.