O Trem da Estação Rodoviária Alfredo Brandão

Por Candida Grillo.

Publicado em 16/07/2019 - 19:35    |    Última atualização: 16/07/2019 - 19:35
 

Foto: Abner Almeida.

Muita coisa acontece em uma estação rodoviária. Desconfio que ali, entre embarques e desembarques, acontecem mais coisas do que a própria cidade muitas vezes consegue proporcionar. Nos meus últimos anos de viajante, e um bom viajante que sou, sempre com documentos em mão, sapatos lustrados e bilhetes devidamente preenchidos, estive por diversas estações, vendo toda essa gente partir ou chegar.

Entre chegadas e partidas, as estações rodoviárias das cidades do interior são as que mais gosto. Paira por ali um clima familiar, Minas materializado em seu estado mais lúdico e passional. O mineiro sem pressa, mesmo que esteja atrasado, sempre estará no seu ritmo com um “papim” ou “cafezim”. Já vi muita proza boa acontecer, alianças políticas se formarem, casamentos que começavam e terminavam, bilhete de loteria, gente catando piolho, fazendo tranças, trocando alianças, comprando chapéu, partindo pra show de rock, deixando os pais, vindo morar de novo com mãe, alimentando um cão na contra mão da traquinagem da correria lá fora. Um espaço na cidade que narra a si mesmo.  

Conheci, certa vez, Dona Lúcia. Criou três filhos, uma menina moça para cuidar da casa e dois meninos homens para cuidar do mundo, como ela costumava dizer. Dona Silva esboçou seu livro de receitas enquanto esperava, todos os dias, seu retorno para a casa. Já Dona Lurdes não gostava de esperar, e tinha também o Armando que sempre tornava a espera de Dona Lurdes mais agoniante com suas narrações de como os “cariocas” estão em grande número nas estações rodoviárias mineiras. Sempre tem um carioca chegando, indo ou voltando.

Na Estação Rodoviária Alfredo Brandão cheguei normalmente adiantado para meu embarque. Como de costume, estava de passagem pela cidade de Espera Feliz e tinha ido ao encontro da tia Fatinha, que morava próxima à rua dos Rodoviários. Tia Fatinha era uma senhora com seus 78 anos, típica esperafelicense, “nasceu de parteira na Rua Pereira”, como costuma contar aos mais novos, e nunca fora de viajar, embora oportunamente acompanhasse os fatos históricos e os trâmites legais do governo para o desenvolvimento do município.

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Contou-me certa vez que, no dia 26 de janeiro de 1962,  o Sr. Itair Lomba Nacarati, na presença do então Prefeito Moacyr Caldeira, recebeu um importante telegrama de Tancredo Neves, que ocupava, na época,  o cargo de Primeiro Ministro do Brasil, pedindo a presença de autoridades esperafelicenses, às 10 horas, no Ministério da Fazendo, na sede do Rio de Janeiro, para tratar de assuntos da municipalidade no que tange a destinação de recursos para a Comarca e investimentos na rede hídrica do município. Tia Fatinha não viajava, mas frequentava a rodoviária com uma majestosa vantagem sobre os viajantes, sabia tudo sobre a cidade e seus moradores e fazia muita informação circular.

Mas de todas as pessoas que conheci, nenhuma se iguala ao senhor Onofre, era um senhor astuto, intrigante, tinha aparência jovial, algo nele parecia exalar jovialidade, apesar de sua aparência física acusar uns 80 anos. Quando novo possivelmente era muito bonito e parecia fazer parte daquele local, como se não tivesse pressa ou sequer um destino. Percebi que muitos se aproximavam dele, e suas narrativas sobre a cidade, suas metáforas sobre os moradores que ora se confundiam com sua idade avançada me fez embarcar na vida rotineira da cidade, uma viagem célebre por Espera Feliz.

– Curioso, disse ele, nunca te vi por aqui, nem embarcando para algum lugar, nem mesmo consertando relógios.

Apresentei-me ao Sr. Onofre, que imediatamente adiantou-se:

– Estou esperando o trem, disse ele.

– Senhor, retruquei, estamos aguardando pela linha rodoviária. O senhor pode me dizer aonde deseja ir?

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– Apenas esperando o trem, ele insistiu.

Com todo respeito aos mineiros – e enfatizo a minha admiração aos bons mineiros que venho conhecendo – esperar por um trem em plena estação rodoviária não fazia sentindo. O trem é para o mineiro assim como o queijo é para goiabada, indispensável, complemento de tudo, argumento,  é substantivo, ora adjetivo, substantivo-composto-de-imaginação, é um objeto, um amor de vida, uma doença incurável, um pacote de encomenda, um barulho bom ou até mesmo algo que não se sabe ao certo.

Só podia ser isso, o Sr. Onofre não sabia ao certo o que estava esperando, talvez nem esperasse por nada, apenas por passageiros que pudessem, por um descuido, interessar-se em ouvi-lo. O trem era o “nada”, apenas uma expressão de quem não sabia o que esperar. Se a rodoviária conta suas próprias narrativas, possuindo vida própria na célula da cidade, os velhinhos das rodoviárias são suas testemunhas oculares.

Ele continuou:

– Ele está quase chegando e não costuma se atrasar! Os trilhos estão gastos e os moradores da cidade precisam de alguém para consertar a carcaça daquela Maria Fumaça velha.

– Não tive coragem de retrucar ou desmerecer aquela “espera”, apenas embarquei também:

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– E ele costuma se atrasar?

– Nunca. Não os trens!

E acrescentou:

– De todos os bons mineiros que conheci, meu filho, doravante escritores, compositores, literários, lendários e os bêbados, que também contam suas narrativas encharcadas de álcool, simplicidade e misticismo, aprendi a importância dos trens quando conheci o Sr. Carlos.

– E o Sr. Carlos também costuma esperar pelo trem com o senhor?

– Ah sim, meu filho, aquele piadista quase sempre está por aqui, mas se adiantou para Itabira no embarque anterior e recomendou-me “cuidado por onde andas, que é sobre meus sonhos que caminha”, e sempre tem uma “pedra no meio do caminho”, mesmos no caminho dos mais entusiastas dos sonhadores!

Nunca soube ao certo o paradeiro daquele homem, se era um contador de histórias, mero apreciador de Drummond, zombeteiro, de fato um sonhador, ou se os anos não lhe ajudavam a memória. Por quantos anos ou tardes de inverno vinha esperando pelo trem na Estação Rodoviária Alfredo Brandão.

Apenas sorri e compreendi: O trem, essa linguagem infindável, uma paródia, um sentimento, uma projeção de Minas, tão presente de forma conotativa nas estradas, assim como na imaginação do mineiro, está ainda presente em rodoviárias, nas bagagens que carregamos, nos poemas de Drummond. Foi quando ouvi o barulho do ônibus estacionando, era minha hora de partir. E ainda com o pé no passado, embarquei, de ônibus, rumo ao futuro.

SOBRE A AUTORA

Candida Grillo é Bacharel em Comunicação Social e Pós-graduada em Direito Público. Nascida e criada em Espera Feliz, passou uma temporada fora para completar os estudos e, atualmente, reside novamente em sua cidade natal, onde trabalha com administração pública. É apaixonada por natureza, astronomia, literatura, moda e Rock and Roll.

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