Era sempre verão. A rua morta se enchia de vida. Que época adorável do ano! O ônibus, vindo de São Paulo, parava na ponte para a família descer. Os pais já deixavam as malas no corredor do veículo, desde a parada anterior, em Carangola. Assim, o motorista poderia deixá-los bem antes da rodoviária, naquela ruazinha morta, próxima à Rua Nova.
Quanta alegria era possível sentir ao ver, de cima da ponte, com o amanhecer soltando seus primeiros raios de sol ainda tímidos, tios, primos e a senhorinha de cabelos brancos em coque, naquela feliz espera.
A menina da cidade grande se surpreendia ao sentir o cheiro do feijão preto, que já àquela hora estava no fogão à lenha. Era um aroma marcante e, apesar de na época ela não saber a importância das fragrâncias para a memória, seria aquele o cheiro específico que a remeteria aos verões mineiros em família. O singelo e terno feijão preto da avó, desde cedo no fogo, deixando um laço invisível de amor na pequena rua de casas sem varandas e sem portões, com suas janelas esbarrando na calçada, formando a trilha de paredes vizinhas que findava no meio círculo daquele caminho sem saída. Aquela mesma visão de todos os anos, aquela mesma sensação de aconchego ao encontrar a árvore sólida, centralizada no meio círculo, tornando a paisagem ainda mais particular, íntima e familiar. Um pulso mais forte de vida, energizado pelo calor do tempo e das relações.
Como não amar a cidade que a fazia ansiar pelas férias? Como não amar estar rodeada dos parentes de sotaque característico, e de mangas, e da piscina do clube? Sem contar a felicidade dos pais por retornarem à origem de suas primeiras experiências, ao chão de seus primeiros passos… Tanto sentimento envolvido!
Era sempre uma espera feliz e recompensadora aguardar a chegada do verão!
A liberdade que sentia na cidade do interior a contagiava. Tomar banho de chuva, ir pra roça na carroceria do caminhão, roubar frutas no caminho, comemorar o aniversário da avó, o natal e a chegada de um novo ano na rua, aquela ruazinha pequena, a rua morta, com direito a ducha de mangueira ao invés da água do mar… Tudo era festa!
A infância foi uma doce experiência, marcada também pelo sabor do hambúrguer do trailer do Toninho, na praça, e as brincadeiras em volta do chafariz. Sem contar a Área de Lazer, que tinha até uma tirolesa! E parecia um lugar enorme, com lago e patinhos e um bar que vendia os melhores picolés.
Depois de algum tempo, crescendo nessa atmosfera de expectativas, descobertas, autonomia, fantasia e inocência, própria da infância, bem no início da adolescência, época não tão democrática, começou a perceber que seu comportamento, fruto da educação que recebia na cidade maior, se diferia um pouco do agir das garotas dali. O salto alto e a maquiagem não faziam parte de sua vida, mas ir para o calçadão de tênis não era uma opção muito bem vista. Foi o primeiro conflito cultural que sentiu: a liberdade de poder passear, à noite, sozinha com pessoas da sua idade, em segurança, e a ditadura da beleza cobrada por um estilo de vida mais precoce do que aquele da sua realidade durante as outras estações do ano. E, durante essa fase, era difícil não comparar aquele local aos filmes americanos de comédia romântica, que mostravam as divisões sociais dos jovens, pois ali havia todo o cenário das patricinhas e dos playboys e a admiração que o despertar da beleza proporcionava. Era atraente, um tanto exagerado e bem desconcertante. Como um elo perdido, partido abruptamente, num piscar de olhos.
Como aconteceu? Por que a paisagem mudou, de repente, de um verão para o outro? Quando a pracinha deixou de ser seu lugar de passeio favorito?
Num piscar de olhos!
Justamente nessa transição, própria da vida, e início de percepção desses cenários distintos, a mudança veio: a cidadezinha mineira dos verões mágicos seria seu novo lar.
E mesmo que o cheiro do feijão preto já não fosse mais constante, devido aos anos avançados da avó, foi uma mudança bem-vinda estar perto dela em sua velhice, ouvir suas superstições e simpatias que “faziam” o cabelo crescer, sentir seu abraço sempre com cheiro de sabonete e sempre macio envolto das suas camisas e saias de algodão… Era gostoso estar ali, sentada no banco daquela rua tão conhecida, perto do barranco que dava para o rio, jogando papo fora.
A verdade é que Espera Feliz ainda era aquela mesma dos verões, mesmo com um colorido diferente… mesmo revelando à menina o inverno característico do pé da serra e os outros aromas e experiências que ele trouxe para a sua vida. Mesmo extinto o cheiro daquele feijão preto, mesmo não sendo sempre verão… foi possível permanecer apaixonada pelo lugar, pelo inverno, pelo cheiro do café, pelas cachoeiras de águas geladas, pelas pessoas e pelo sotaque, já perceptível nela… Porque, na verdade, Espera Feliz ainda era aquela mesma…
SOBRE A AUTORA
Mara Rubia, paulistana de Santos, viveu em Cubatão até os 16 anos de idade. É professora por formação e atua como Supervisora Pedagógica. Sua personalidade e identidade, sujeitas a transformações constantes, têm raízes em um contexto marcado profundamente pela experiência de ter ido viver em Espera Feliz desde a adolescência. Lá, deparou-se com a melhor versão que poderia desejar de si mesma, uma mulher cheia de paixões: pela vida, por pessoas, pela natureza e, principalmente, por uma vastidão de possibilidades que a leitura e a escrita podem oferecer, como ela própria afirma: “As palavras me encantam! O que eu posso dizer sobre mim de mais relevante é que me sinto tantas, que uma só voz não me representa, por isso a escrita me completa”.