O mecanismo da mentira: como funciona a dinâmica das Fake News

A forma como são colocadas, com tanta ênfase e uma aparente propriedade, é capaz de enganar o leitor desprevenido que as interpreta como verdades absolutas.

Publicado em 27/08/2021 - 14:33    |    Última atualização: 27/08/2021 - 15:34
 

Em um mundo onde as redes sociais nos conecta diretamente uns com os outros, independente das distâncias e sem o intermédio das grandes corporações de notícia, o que era para ser um avanço – devido à liberdade e à democratização da informação – acabou representando um verdadeiro retrocesso para a sociedade. Correndo à margem dos tradicionais meios de comunicação, o cidadão comum – muitas vezes sem especialidade, conhecimento ou responsabilidade sobre aquilo que diz – tornou-se hoje um potencial formador de opinião, capaz de influenciar e direcionar inúmeras pessoas ao propagar informações duvidosas ou de origem nem sempre confiável. Assim, somos todos ameaçados pelo compartilhamento das Fake News.

É através delas que ideias improváveis – e muitas vezes absurdas – como “a dominação do ocidente por líderes e pensadores globalistas”, “a doutrinação esquerdista nas escolas”, “o marxismo cultural determinando o rumo das nações”, “o plano diabólico dos chineses de produzir em laboratório e contaminar, deliberadamente, a humanidade com o Coronavírus” e “a suspeita de que as vacinas contra a Covid-19 fazem mal à saúde”, acabam ganhando força e se transformam, de um instante para outro, em “verdades inventadas” mais poderosas do que a “verdade real”.

Embora um de seus artifícios seja a produção de vídeos curtos, com mensagens diretas e de fácil assimilação, é também bastante comum a veiculação das Fake News através da mídia escrita.

Abaixo, descrevo 10 dos principais dispositivos desta modalidade de desinformação que tem encontrado terreno fértil e desvirtuado o debate político e ideológico nos últimos anos, especialmente no Brasil.

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As engrenagens da máquina de fabricar mentiras

1- O texto é elaborado a partir de uma especulação alarmista sobre determinado assunto, com base apenas em suposições e afirmações vagas. A rigor, “especulação” não é um fato, não é teoria, não é sequer uma tese, pois falta-lhe o básico: na argumentação, apresentam-se informações sem fundamentos comprovados ou descolados do senso de realidade;

2- Como seu propósito é favorecer ou atacar uma pessoa, ideia ou grupo, a abordagem do tema sempre traz uma “aparente coerência” com aquilo que se defende ou se critica. Por isso, as informações veiculadas são inventadas, distorcidas ou manipuladas de forma tão sutil que chegam a ser convincentes, seduzindo o interlocutor mais desatento;

3- Para impressionar o interlocutor e fisgar sua atenção, o texto é composto desde o título por frases de efeito e sentenças impactantes, além de manifestar opiniões de senso comum que não exigem muito esforço para ser interpretadas;

4- Para passar uma impressão de credibilidade, geralmente o texto é relativamente bem escrito, mais ou menos de acordo com a norma-padrão da língua, e assinalado com alegorias que denotam certa “bagagem cultural” por parte de quem o redige e de forte apelo emocional, como metáforas, hipérboles e antíteses;

5- Para se esquivar de questionamentos ou confrontos de argumentação quanto à veracidade das informações, é comum encontrar passagens que fazem referência à conspirações ou forças ocultas, com frases persuasivas do tipo: “estão escondendo de você”, “não querem que você saiba”, “a grande mídia está por trás de tudo”, “não seja enganado” etc. São recursos psicológicos da linguagem para desarmar quem pensa de forma mais cética e reflexiva;

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6- A capacidade de convencimento de uma Fake News é poderosa porque nem sempre ela se baseia em informações inteiramente falsas. Quanto mais elementos “verdadeiros” ela apresentar (nomes reais, pessoas reais, situações reais etc.), mais eficaz se torna sua argumentação, mesmo que tais elementos estejam nitidamente descontextualizados ou manipulados;

7- Por mais curto que seja, o texto engloba de propósito uma infinidade de assuntos aleatórios para justificar o ponto de vista do redator. Porém, mesmo não sendo possível identificar claramente o assunto central, cria-se no leitor uma falsa ilusão de que, se há tantos argumentos, o texto só pode estar tratando de algo verídico;

8- Em geral, o texto não apresenta fonte nem autoria. Quando os apresenta, ou são fontes e autorias inexistentes ou sem qualquer relevância para o debate público (pessoas/profissionais desconhecidos, veículos alternativos de comunicação, canais amadores de mídias sociais etc.);

9- O texto é compartilhado de maneira estratégica pelas redes sociais: grupos fechados ou abertos de família, de trabalho, de amigos, que têm como maioria de membros adeptos da ideia que se defende ou se critica. Por isso, em questão de horas o texto extrapola os limites da bolha e alcança milhares ou milhões de pessoas;

10- O público-alvo são indivíduos com maior propensão à manipulação, vulneráveis a receber informações sem comprovação e com certa dificuldade em discernir um fato real de uma suposição fantasiosa. Neste caso, independe do grau de escolaridade ou de instrução do interlocutor – e até mesmo de sua capacidade cognitiva –, pois aceitar ou não a argumentação de uma Fake News tem mais a ver com valores e crenças pessoais do que com o conhecimento geral de mundo de quem as recebe/compartilha.

Sobre este último item, em entrevista à BBC News Brasil, o diretor da Associação Brasileira de Psiquiatria, Dr. Claudio Martins, revela que tomar como verdade o conteúdo de uma Fake News faz parte de um fenômeno sociocultural, resultado do analfabetismo digital que atinge boa parte da população. Tal afirmação se baseia no fato de que a popularização da internet e o surgimento de redes sociais são recursos relativamente recentes, por isso demandam tempo para que os cidadãos sejam adequadamente educados e passem a usá-los de forma mais consciente.

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Por outro lado, além da inabilidade para identificar se um conteúdo é falso ou verdadeiro, há também uma parcela que compartilha informações mesmo sabendo tratar-se de Fake News, como aponta uma pesquisa realizada pela Universidade de Regina, no Canadá, em 2019. Segundo o estudo, publicado pela Revista Superinteressante, muitos compartilham notícias inverídicas a partir de uma concordância individual, isto é, se o conteúdo está de acordo com suas opinões pessoais, independente da fonte, da autoria e da veracidade dos fatos.

As Fake News na prática

Como exemplo, apresento dois textos de conteúdo falso veiculados recentemente pelo aplicativo WhatsApp, que contêm a maior parte das características descritas acima. De origens anônimas, ambos representam grupos políticos de espectros opostos: o primeiro é ancorado por um discurso de esquerda; o segundo por um discurso bolsonarista.

Basicamente, o texto acima aborda pelo menos 7 assuntos diferentes: o suposto pedido de prisão do filho do Presidente, Carlos Bolsonaro (Carluxo); Carlos Bolsonaro é quem lidera a rede de Fake News e o escritório do ódio nas redes sociais; seu eventual envolvimento na execução da vereadora carioca Marielle Franco; Jair Bolsonaro planeja um golpe militar para defender seu filho; o atual governo possui índice recorde de rejeição; apoio massivo da população à possível candidatura do ex-presidente Lula.

Embora a argumentação esteja pautada em contextos reais (Carlos Bolsonaro como alvo de investigação, discurso antidemocrático e golpista do Presidente, grande índice de rejeição ao governo Bolsonaro etc.), todas as afirmações carecem de dados concretos que as comprovem. Por isso, mesmo que futuramente essas informações se revelem genuínas, por enquanto não passam de meras especulações. Mas a forma como são colocadas, com tanta ênfase e uma aparente propriedade, é capaz de enganar o leitor desprevenido que as interpreta como verdades absolutas, principalmente se este for favorável às ideias defendidas pelo grupo que as propaga.

Já este segundo texto (que mistura pandemia, governos de direita e esquerda, lockdown, expropriação de empresas, implantação do comunismo na Argentina, compra do território argentino pela China, defesa do governo Bolsonaro, ataque ao Partido Comunista Chinês e a políticos da esquerda brasileira) faz uma mixórdia de afirmações infundadas ao discorrer sobre diferentes assuntos que pouco ou nada têm a ver entre si.

Na verdade, com uma rápida pesquisa é possível descobrir que praticamente nenhum dos “fatos” apresentados é real, o que torna a argumentação do texto superficial e inverossímil. No entanto, a carga emocional contida em cada parágrafo, através de palavras e expressões como “muito triste”, “é importante para todos”, “alerta”, “esperança”, “mierda”, “arrependida amargamente”, “canto da sereia”, “maldita”, “que Deus nos ajude”, “virtudes”, “desabafo” etc., funciona como um apelo ao interlocutor, convencendo-o não pela veracidade das informações, mas pela sedução provocada por este tipo de linguagem. Se as crenças de quem recebe o texto compactuam com o teor da mensagem, mesmo que lhe falte conhecimento ou discernimento para comprová-lo, ela é instantaneamente compartilhada.

Massa de manobra

A produção e disseminação das Fake News, além de empobrecerem o debate público com conteúdos propositalmente equivocados, acabam servindo de ferramenta espúria de propagação de ideias que em nada acrescentam para a sociedade – especialmente quando abordam assuntos delicados como política.

Mas no oceano tempestuoso que é a internet, há certos faróis que indicam a direção segura para se navegar. Com o intuito de mitigar os efeitos danosos das informações falsas, hoje em dia existem diversas agências confiáveis de checagem, capazes de esclarecer se uma notícia, uma reportagem ou uma mensagem de WhatsApp são ou não verdadeiras, como as plataformas digitais aosfatos.org, boatos.org, Agência Lupa (piaui.folha.uol.com.br/lupa/), Fato ou Fake (g1.globo.com/fato-ou-fake/), e-farsas.com e Painel de Checagem de Fake News (cnj.jus.br).

Por isso, independente dos valores, conceitos, crenças e lados políticos que defendemos, antes de compartilhar as informações que nos chegam aos montes é preciso confirmar sua veracidade – ou passaremos a vida servindo de massa de manobra a propósitos e ideologias que nem sempre conseguimos entender direito.

Por Farley Rocha.


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