Estou a 400 quilômetros de casa e assim descubro o quanto do brasão de Minas também é feito de arte, de ferro e do brilho mineral da história. Subo ladeiras subitamente ofegantes quando vistas de baixo e por elas sigo em blocos de pedra, ajustados uniformemente nas calçadinhas íngremes de Ouro Preto.
Suas ruas e ruelas estreitas me direcionam morro acima ou abaixo, entre casarões que por pouco a modernidade não demoliu em pó. Pelos beirais torneados, sacadas coloridas e gradis dos sobrados dá pra imaginar quanta gente cheia do cobre já passou por aqui, quando a Casa dos Contos ainda fundia moedas no tempo áureo da mine(explo)ração. “Mas todo o ouro do subsolo já se foi há muito tempo”, um guia explica a um grupo de adolescentes da excursão escolar.
Caminho sob fachadas seiscentistas aonde se dependuram lânguidos lampiões de época, agora movidos à luz elétrica. Por lá, turistas branquelos e asiáticos e cariocas trafegam indiferentes ao meu lado, clicando fotografias nas quais minha cara deve aparecer ao fundo (indiferente).
Mas indiferença é só no modo de dizer, porque Ouro Preto, uma espécie de maquete em tamanho real, não passa impune a ninguém. Aqui, não é o tempo que parece ter parado, mas uma parte do espaço desse tempo que se mantém estático no ar, enquanto somos nós, boquiabertos, quem envelhecemos a cada minuto que gastamos atravessando suas praças com fonte em pedra sabão ou entrando pelos cafés e pub’s nos seus porões centenários. Os museus são a prova disso, pois conservam a memória desta cidade como um retrato que não perde a cor, desde os valiosos pertences (f)utilitários dos barões do minério até os apetrechos cruéis de torturar escravos – o centro histórico inteiro é um cenário ao ar livre que emociona e, por vezes, assusta.
Estando aqui, a sensação que se tem é de que a qualquer esquina poderemos esbarrar no ombro de algum santo de carne e osso, como se os sonetos de Gregório de Matos se personificassem pelas calçadas. Porque em qualquer ponto da cidade que se esteja é possível ver a torre de pelo menos uma igreja, em meio a outras dezenas. E são todas tão simbolicamente edificadas que cada detalhe do seu estilo barroco faz pensar que a fé não só removeu montanhas neste lugar como também deu forma a elas, catedrais de rocha habitadas por arcanjos de ouro e milhares de imagens sacras segundo Aleijadinho.
Quando a noite vem caindo, tenho a impressão de que as sombras dos telhados coloniais querem me dizer algo que não posso compreender. Estou na Praça Tiradentes, na colina principal, quando o céu escurece por completo. Sem fazer ideia do quanto já se conspiraram sob esses lampiões oxidados desde trezentos anos atrás, sinto-me como um inconfidente de mim mesmo, revelando segredos no olhar feito os versos árcades para Marília de Dirceu. Uma criança que se deslumbra numa cidadezinha aonde tudo que se olha parece ser de brinquedo.
Desligo a câmera e desço a Rua Direita, aonde muitos evocam a infância na boemia acadêmica das tavernas de Ouro Preto.
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p.s. Dedico esse retrato-(mal)falado sobre a charmosa “Vila Rica” aos amigos universitários da República Cassino, que me acolheram gentilmente com cama, comida e goró.
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Farley Rocha, fã do Radiohead e do Seu Madruga, nasceu em 1982 e mora na cidade de Espera Feliz, interior de Minas. Professor por formação e poeta por obsessão, mantém o blog palavraleste.blogspot.com, espaço aonde publica seus textos e outras insanidades literárias.