Este é um artigo ou crônica pessoal de Pricila Magro.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Caminhar pelo centro histórico de Ouro Preto é quase como atravessar um portal que nos leva de volta ao tempo. É respirar História, Arte e Literatura. Pelas mãos do mestre Aleijadinho, a arquitetura vai contando um pouco do período colonial do país. Num sobe e desce, as ladeiras de pedra nos levam ao grito do movimento inconfidente que ainda ecoa na praça central. Eu que sou apreciadora dessas três áreas do conhecimento chego ao final do dia com dor no pescoço de tanto olhar para cima e admirar a beleza local.
Há poucos dias tive uma segunda oportunidade de fazer esse teletransporte. Embora apaixonada pela Vila Rica de ontem e Patrimônio Cultural da Humanidade hoje, voltei para casa, como da outra vez, com aquela sensação de angústia e dor.
Mais do que uma retomada histórica, Ouro Preto nos faz um convite à reflexão sobre a crueldade humana. Cada pedacinho daquele lugar foi construído com força física, suor e muito, muito sangue negro. Ao contrário do que se costuma imaginar, os escravos – especialmente escolhidos – vieram para nossa terra mineira porque eles, e não os homens brancos e nobres, mas eles, negros arrancados brutalmente da sua terra, detinham o conhecimento técnico da extração do minério. Antes de 1500 esse povo, que tanto sofreu em solo nacional, já possuía domínio do processo de fundição do minério aurífero e de ferro. Seus conhecimentos e sua capacidade intelectual os trouxeram até aqui.
Ter o privilégio de um guia turístico nos dá a chance de acessar determinados detalhes do passado que uma visita “livre” não oportunizaria.
O guia, naquela imensidão de informações e curiosidades, relatou uma passagem de tortura sofrida por um dos escravos. Ali, dentro de uma antiga senzala – que agora exibe tantos objetos de tortura – o nosso acompanhante de passeio narra um episódio no qual um garoto foi amordaçado e chicoteado. Despido de suas roupas, o espancamento segue chibatada após chibatada até que esse indivíduo caia com a exaustão. Era preciso tomar cuidado para não danificar a mercadoria (carne humana) e isso o chicote faz bem, corta a pele, mas não quebra ossos. Arranca sangue vivo e junto dele toda a dignidade daquela pessoa, que agora ocupa uma posição muito abaixo de um animal. Era preciso torturar bastante para que os escravos aprendessem, por exemplo, a não roubar para comer.
Ouso dizer que você, leitor, ficou – no mínimo – “incomodado” com a história. É triste e completamente lamentável relembrar esse episódio nefasto da nossa história, mas me faltam aqui adjetivos para caracterizar o quão abominável esse texto se torna quando as informações sobre o tal “escravo”, na verdade, não são mais do que recortes dos jornais sobre um recente crime nacionalmente noticiado. Um adolescente fica nu, por quase uma hora, sob a mira dos acoites, improvisados com fios elétricos, que castigam o corpo do menino que acabara de furtar um supermercado. O ano é 2019 e ainda temos tronco, chicote e tortura. É alguma surpresa para você eu dizer que ele é negro?
Por Pricila Magro.
Pricila Magro é bacharela em Direito por escolha; professora por vocação. Desde os 15, não sabe gostar de outra banda senão Coldplay. Escreve por prazer, lê porque acredita que essa é a melhor forma de nos humanizar. A filha mais nova que não é nem meiga nem fofa. Sincera demais para os padrões "mimimi".