Este é um artigo ou crônica pessoal de Paulo Faria.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Houve um tempo, não muito distante, em que nossos canais de TV eram os principais veículos de comunicação do povo brasileiro. Foi um tempo em que o limite era não ter limites e isso nos presenteou com programas épicos, cenas clássicas e momentos “absurdos”. E o que este texto procura é resgatar uma pequena fração da memória muito “punk” da TV aberta de um Brasil não muito distante do “nosso tempo”. Vamos lá!
Às oito da noite a “família tradicional” brasileira sentava-se reunida na sala para assistir a novelas como ‘Tieta’, da TV Globo, cuja abertura tinha a maravilhosa Isadora Ribeiro peladíssima num mosaico “erótico-artístico”. Às nove e meia era a hora do “cidadão de bem” trocar de canal para a extinta Rede Manchete e se deleitar com a novela ‘Pantanal’ que exibia em meio às belíssimas cenas pantaneiras uma mulher nua a cada 30 segundos (isso, durante um ano). Era puro êxtase!
Ainda, na Rede Manchete, tínhamos o ‘Carnaval da Manchete’, que embora mostrasse os desfiles tradicionais como na sua concorrente, a Rede Globo, o canal fazia questão de mostrar o “submundo” da maior festa do planeta; e por aí dá para imaginar que tipo de cenas a típica “família tradicional” brasileira via transbordar pela tela da TV. Essa parte só perdia para o ‘Carnaval das Brasileirinhas’; mas perdia por muito pouco.
Os programas infantis eram um caso à parte. No caso do programa ‘Clube da Criança’, que estreou sendo apresentado pela Xuxa em meados dos anos 80 e posteriormente pela Angélica, embora seguisse quase todos os ritos de um programa infantil com desenhos, brindes e tudo mais, havia dias em que a molecada se deparava com a Xuxa trajando – sem exagero! – roupas menos comportadas do que uma prostituta de subúrbio. Afora os referidos trajes da apresentadora, em todos os programas infantis da década seguinte contavam com ilustríssimas presenças dos 800 mil grupos de axé-pagode-samba e suas bailarinas seminuas ensinando a meninada a “ralar” até embaixo na “boquinha da garrafa”. Educativo era pouco.
Já a função do palhaço Bozo era fazer bullyng com os infantes em seu programa entre uma brincadeira e outra. Se o programa existisse hoje tal qual era nos anos 80, a patrulha politicamente correta e dos justiceiros sociais provavelmente linchariam em praça pública nosso melhor e mais famoso palhaço na primeira oportunidade.
Aos domingos, no SBT, um dos quadros mais importantes do programa ‘Domingo Legal’ era a ‘Banheira do Gugu’, a principal atração do expectador brasileiro. Era essa a hora em que a casa ficava toda reunida como se fosse fazer uma prece para vidrar com artistas de terceira categoria mais uma “Modelo” de biquíni dentro de uma banheira com espuma tentando agarrar um sabonete. O momento mais importante era quando o cinegrafista conseguia – imagine você – sem pretensão nenhuma, capitar a imagem da “Modelo” do programa na posição de quatro. A imagem que saltava da TV era uma beleza, sem contar que quase nunca a “Modelo” no meio daquela confusão toda dentro da banheira conseguia deixar os seios devidamente guardados. Nossos almoços de hoje em família são bem menos legais que nos anos 90, acredite!
À noite, no horário nobre, enquanto o pau quebrava de um lado com as novelas da TV Manchete, do outro, tínhamos as minisséries Globais como ‘Engraçadinha’ (baseada na peça de Nelson Rodrigues); “Cocktail” e “Sabadão Sertanejo” com – de novo! – “Modelos” ao fundo com os seios à mostra, no SBT; documentários sobre praia de nudismo em qualquer canal ao invés de natureza geográfica, e por aí vai. (Um detalhe importante: qualquer canal de TV da época que durante os comerciais anunciasse alguma atração “baseada” em Nelson Rodrigues ou Jorge Amado você podia esperar que as obras dos citados autores era só pretexto pra botar mulher pelada na tela).
Às sextas, na BAND, dez da noite, era o dia do ‘Cine Sex’: uma sessão de cinema feita para garotos em plena ebulição hormonal. No catálogo, filmes – na maioria, americanos – do gênero ‘soft porn’. Com jeitinho, seu paizão orgulhoso deixava você poder ter aquela curtição assistindo aquelas magníficas atrizes siliconadas.
Se hoje, a TV aberta à tarde só exibe “filme de cachorro”, nos anos 90 corríamos depois da escola para poder assistir ao ‘Cine Trash’, também na BAND – uma sessão de filmes de terror apresentado pelo icônico ‘Zé do Caixão’ onde você podia contar com bastantes cabeças decapitadas, tripas, sangue e mulheres… nuas!
Nos outros canais, no mesmo horário, não era diferente: as listas de filmes iam do terror ao ‘porn soft’ e em algum dia da semana em qualquer emissora e em qualquer horário rolava alguma pornochanchada com atrizes brasileiras que tinham mais pelos nas axilas que nas partes íntimas.
Luciano Huck estreou na TV no final dos anos 90 com o programa ‘H’ à tarde e foi neste programa que uma geração moleques cheios de espinhas conheceu Tiazinha e Feiticeira. Se a Pablo Vittar é a musa dos anos de 2020, nos anos 90 Tiazinha e Feiticeira eram duas das coisas mais perfeitas criadas pela natureza. Era loucura, loucura, loucura!
No meio dessa doideira toda nem o Canal do Boi escapou. Sim, me refiro àquele canal que fica passando boizinhos e vaquinhas o dia todo. Ao invés de algum pastor evangélico comprar um espaço no canal de madrugada para “vender” milagres a preço de ouro, como é de costume hoje, em 1999 algum maluco resolveu comprar o espaço pra fazer outra coisa: botar striptease da meia-noite às seis da manhã misturado com esquetes de filmes pornôs americanos e venda de produtos eróticos. Era insano e uma legião de garotos daquele período desejaria ter nascido com cinco mãos direitas – e, no caso dos canhotos, cinco mãos esquerdas.
E tem mais: sushi erótico no Faustão, mulheres fazendo parto no Canal Saúde, bizarrices das piores formas no Ratinho, suicídio ao vivo em telejornal, comercial de cerveja com mulher de biquíni na praia no “horário infantil”, o Didi (do programa ‘Os Trapalhões’) chamando nosso eterno Mussum de “Azulão” em referência a sua cor negra, cadáveres no programa policial ‘Cadeia’, na Rede CNT, em plena hora do almoço, bandas de rock pesado tocando em qualquer horário, Chacrinha botando o terror nas tardes de sábado e a lista não para…
Pra quem nasceu nos anos 2000 e está lendo este texto deve está se perguntando: “Mas a TV aberta era assim? ”. Era. A galera que comandava as redes de Televisão na época fazia de tudo pela audiência. Tudo. Não havia limites para a baixaria e o politicamente incorreto. A zoeira era total. Mas claro, havia também programas infantis com os melhores desenhos animados, animes, seriados; novelas mexicanas bregas e programas de auditório mais ou menos, digamos, “mais ou menos”. O negócio era que a zorra era tão grande que tudo se confundia com tudo e como ainda não havia classificação indicativa, a garotada que assistia ao Pica-pau de manhã era a mesma que a tarde ia assistir a sangue, tripas e peitos à tarde no ‘Cine Trash’.
O que há de se ter em mente sobre a época em que o politicamente incorreto dava a tônica é que qualquer que seja o julgamento deve-se ter cuidado com o anacronismo. Do ponto de vista de quem vos escreve e dos meus amigos era divertidíssimo! Não havia internet e era muito prazeroso ligar a TV e sempre ficar na expectativa do efeito “surpresa”. Até as propagandas eram épicas, fossem pela ousadia, fossem pela criatividade. Cito uma clássica. Em 1995 a empresa de chocolates ‘Garotos’ encomendou ao premiado publicitário Washington Olivetto um pequeno filme de quase três minutos o qual mostrava “os sonhos dos garotos”. Nesta pequena obra-prima, garotos na puberdade sonham com garotas fantasiando-as e se descobrindo para a sexualidade. No roteiro, música de fundo de Frank Sinatra e atuações da atriz Karina Bacci e de outras atrizes lindíssimas. Esta peça de Olivetto é um dos comerciais da TV brasileira mais famosos de todos os tempos e embora seja magnífica e sutil a abordagem da sexualidade através de uma propaganda de chocolates jamais seria exibido em algum canal aberto hoje em dia.
Enfim, dividir o mesmo espaço com sua família para assistir às mesmas coisas sem a separação do que era “impróprio” ou não não causava estranheza em ninguém porque simplesmente “era assim”. Minha percepção própria, pessoal, era de ter sido uma infância feliz e divertida para uma geração apesar dos poucos recursos financeiros de muitos e ausência tecnológica como a internet. A TV era uma espécie de oráculo do “nosso tempo” e curtíamos muito mesmo aquela loucura nossa de cada dia.
Era foda.
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Bônus:
Assista as aberturas das novelas “Tieta”, “Pantanal” e a “ousada” propaganda dos chocolates ‘Garoto’, de 1995, nos vídeos abaixo:
Por Paulo Faria.
Paulo Faria é um amante do cinema de horror e rock ‘n’ roll. É professor por formação, humorista por conveniência e escritor por aspiração.