Este é um artigo ou crônica pessoal de Paulo Faria.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Dia 27 de março último foi a data que se comemorou os 60 anos do nascimento de Renato Russo – o maior poeta da música brasileira. Poeta, sim, pois nem antes nem depois dele ninguém conseguiu com maestria unir versos únicos em acordes com tamanha perfeição. (Ouça a canção ‘Acrilic on Canvas’, do segundo disco da Legião Urbana e comprovem).
Em vida, Renato Russo foi alçado à condição de “Messias” devido a sua capacidade de sintetizar através do rock todas as aspirações e frustrações da sua geração. Foi ele o maior porta-voz de brados engasgados de uma juventude ávida por liberdade de expressão.
Até a sua morte, com a Legião Urbana, Renato compôs oito álbuns; em carreira solo, dois álbuns. Mas foi com o derradeiro disco da Legião Urbana, ‘A Tempestade’, de 1996, lançado às vésperas de sua morte, que Renato Russo externou toda a dor de seu sofrimento. À época, padecendo dos males que a AIDS lhe trazia, este disco foi escrito envolto de uma atmosfera melancólica em todos os sentidos: reclusão, depressão, alcoolismo, o abandono dos medicamentos do tratamento da doença e o clima nada amigável com seus companheiros de banda. Tudo isso culminou para que o disco ‘A Tempestade’ trouxesse uma temática devastadora de perda, pessimismo, solidão, tristeza e morte, se transformando numa espécie de “carta de adeus” de Renato Russo ao mundo através de canções que fazem uma ode à melancolia. Nada no disco é alegre ou traz esperança. Nada. O clima é de desalento total – fruto das letras mais introspectivas que Renato escrevera até ali interpretadas com uma voz fraca e debilitada somada aos arranjos musicais tristíssimos feitos sob medida para cada uma das 15 músicas que recheiam o disco, principalmente os arranjos de teclado.
É sob todos estes aspectos que ‘A tempestade’ é o disco mais triste do rock brasileiro e figura também dentre os mais tristes do rock de todos os tempos.
A faixa que abre o disco, ‘Natália’, é a mais pesada, mas nem por isso há alívio na “cólera” que se estende durante sua execução. Os primeiros versos são o prenúncio do que virá à frente no decorrer do disco: “Vamos falar de pesticidas/E de tragédias radioativas/De doenças incuráveis/Vamos falar de sua vida”. Nestes versos, é como se Renato comparasse a vida do interlocutor com tragédias radioativas ou doenças incuráveis. E continua: “Ter esperança é hipocrisia/A felicidade é uma mentira/E a mentira é a salvação. No fim deste caos todo misturado à riffs de guitarra, Renato tenta se redimir quando entoa a frase “Mas quem sabe um dia eu escreva uma canção pra você”. O problema é a adversativa “mas” que impede qualquer tipo de sentimento de misericórdia.
Em ‘L’Avventura’, diz Renato: “E nem o céu é belo e prateado/E o que eu era eu não sou mais/E não tenho nada pra lembrar”. ‘Em Longe do meu lado’, o “alvo” é a paixão: “A paixão quer sangue e corações arruinados/E saudade é só mágoa por ter sido feito tanto estrago/E essa escravidão e essa dor não quero mais/Quando acreditei que tudo era um fato consumado/Veio a foice e jogou-te longe; longe do meu lado”.
A ‘Via-Láctea’ é sem dúvidas um dos pontos mais dramáticos de ‘A Tempestade’. Nela, Renato narra em primeira pessoa seu estado emocional de uma forma crua e amarga. Quando se ouve a música é como se o cantor estivesse te fazendo uma confissão: “Quando tudo está perdido/Eu me sinto tão sozinho/Hoje a tristeza não é passageira/Hoje fiquei com febre a tarde inteira/E quando chegar a noite/Cada estrela parecerá uma lágrima/Queria ser como os outros/E rir das desgraças da vida/Ou fingir estar sempre bem”. Realmente é uma canção muito dolorosa de se ouvir. A atmosfera triste, de desamparo e confidência, faz com que o ouvinte se torne parte da narrativa do autor. Outro ponto dramático está em ‘Música Ambiente’ quando Renato numa ambiguidade declara: “E quando eu for embora/Não, não chores por mim”.
Dando um salto mais à frente, na faixa 9, ‘Dezesseis’, é contada a história de João Roberto, o ‘Johnny’, um jovem de dezesseis anos que morre praticando um “racha” automobilístico; e tudo “por causa de um coração partido”.
Não vou me estender analisando faixa a faixa do disco, mas é impossível não citar a trilogia que encerra o álbum e que coincidentemente são as três melhores canções de ‘A Tempestade’: ‘Esperando por Mim’, ‘Quando Você Voltar’ e ‘O Livro dos Dias’.
‘Esperando por Mim’ é a música que mais gostoda carreira da Legião Urbana. Tudo nela é fantástico: os arranjos, a letra, a melodia (triste) e um “q” de rock progressivo. Ao mesmo tempo que ela me causa uma sensação de agonia, me causa também uma sensação de redenção. Depois do instante em que Renato diz que o “mal do século é a solidão” ele arrebata dizendo que “nossos dias serão para sempre”.
‘Quando você Voltar’ é uma singela balada acústica que descreve a briga de um casal: “Meu amor, cuidado na estrada/E quando você voltar/Tranque o portão/Feche as janelas/Apague a luz e saiba que te amo…”. Essa é uma daquelas músicas para se ouvir sob a luz da lua que entra gentilmente pela fresta da janela enquanto você está devidamente acomodado numa poltrona pensando naquele alguém que partiu…
E pra fechar o disco temos a também ultra dolorosa ‘O Livro dos Dias’. A canção é um épico em todos os sentidos com um dos melhores versos compostos pelo Renato. Mas aquele que definitivamente marca é “Meu coração não quer deixar meu corpo descansar”. Com isso encerra-se o ciclo de umas das mentes mais brilhantes que já pisou na terra.
‘A Tempestade’ foi lançado no dia 20 de setembro de 1996, três semanas antes da morte de Renato Russo. O cantor quase não compareceu aos estúdios de gravação devido aos problemas já relatados neste artigo; ele acompanhou as gravações, mixagem e produção à distância, em casa, e invariavelmente brigando e desaprovando o trabalho que o resto da equipe fazia no estúdio. A verdade é que poucos sabiam até o momento da morte de Renato Russo o real estado do artista. O próprio guitarrista Dado Villa-Lobos em seu livro diz que falou com Renato Russo por telefone uma vez dois meses antes de sua morte. O diretor artístico do disco tentou convencer o vocalista a voltar ao estúdio e regravar os vocais, pois as vozes até ali registradas eram apenas as “vozes-guias” que servem de parâmetro para conduzir as gravações. Renato Russo se negou e o que ficou registrado no produto final foram as primeiras vozes mesmo e pronto. Por isso – apesar do estado debilitado do cantor – é perceptível ao ouvir ‘A Tempestade’ um vocal cansado, fraco e quase sem expressão, muito diferente dos trabalhos anteriores de Renato Russo. Este fato ajudou ainda mais na carga de dramaticidade que o disco ‘A Tempestade’ carrega.
‘A Tempestade’ foi o primeiro disco da Legião Urbana que não aparece a frase em latim “Legio omnia vincit” (“Legião a tudo vence”) substituída por outra de Oswald de Andrade: “O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus”. ‘A Tempestade’ foi uma das formas que Renato encontrou de dizer “adeus”.
O mosaico de sentimentos como o de perda, paixão, pessimismo, solidão, tristeza, depressão e morte faz de ‘A Tempestade’ uma obra icônica – fruto dos momentos mais desoladores do maior compositor brasileiro, e que em maior ou menor grau também ecoa em cada ouvinte.
Paulo Faria é um amante do cinema de horror e rock ‘n’ roll. É professor por formação, humorista por conveniência e escritor por aspiração.