Este é um artigo ou crônica pessoal de Paulo Faria.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Ao acordar pela manhã, o renomado Dr. Isak, de 78 anos, lembra-se do estranho sonho que tivera na noite anterior. Nesse sonho, o médico se encontra em uma rua deserta e sombria. Ao caminhar por ela, ele repara que tanto o relógio da rua quanto o seu de bolso estão sem os ponteiros. Mais adiante, ele encontra um estranho ser vestido de negro, de costas próximo a um poste, e, quando o toca, este cai e se dissolve como um corpo oco e sem vida. O ápice desse sonho perturbador acontece quando ao dobrar uma esquina, o médico se depara com seu próprio funeral.
Dr. Isak, que foi convidado a ir receber um importante título honorífico na cidade de Lund pela ocasião do aniversário de seus 50 anos de profissão médica, pensando em se tratar de uma premonição, desiste de ir de avião, preferindo fazer todo o percurso de carro. Sua nora, Marianne, que se encontra hospedada em sua casa em razão de uma discussão com o marido, pede uma carona de volta pra casa, também em Lund, no intuito de tentar uma reconciliação com o marido.
Os dois seguem juntos, sogro e nora, e a partir daí, durante a primeira parte da viagem, o diálogo de ambos é pautado em remoer conflitos familiares. Enquanto Marianne, com muito cinismo, questiona o médico sobre sua personalidade e a forma como lidou com sua família durante sua vida; Isak age com ironia, frieza e o mesmíssimo cinismo.
Na primeira parada durante a viagem, Isak convida Marianne a conhecer a velha casa onde na sua juventude passava os verões com sua extensa família. Enquanto Marianne decide tomar banho no lago, o velho senhor começa a desenterrar antigas lembranças, e ao contemplar serenamente ao seu redor, um mosaico de imagens do passado invade seus olhos: o canteiro de morangos silvestres, o almoço em família, o grande amor de sua vida – sua prima Sarah –, com quem não se casou, e assim por diante. A nostalgia é tão carregada, que por vezes parece que vai se tornar palpável. E o médico só acorda de seu sonho real quando é interrompido pela voz de uma adolescente lhe pedindo carona pra si e seus dois amigos.
Na segunda parte da viagem a interação se concentra entre os três jovens e o velho médico, mostrando através de uma metáfora a cruciante realidade entre o auge do vigor da vida e seus momentos finais. Para completar, um acidente na estrada faz com que Isak conheça um casal de meia idade inoportuno que está em crise pelo desgaste do casamento e pela idade que está avançando. Ou seja, uma realidade parecida com a de Isak que o faz refletir sobre o tempo.
E este, portanto, é o fio condutor desta maravilhosa película sueca dirigido por Ingmar Bergman: a dissipação do tempo. Mas não só isso. O sentido da existência humana, a existência de Deus, saudosismo, o envelhecimento e a iminência da morte; todos estes elementos dão sustentabilidade ao filme que vai sendo norteado pelo protagonista.
Dr. Isak é um homem com personalidade forte e convicções concretas. Mas durante sua vida, se tornou também egoísta, frio, vazio de amor sincero para com seus familiares, amargo e solitário. Logo na primeira cena, em forma de monólogo ele deixa claro este seu isolamento quando diz que “Nossa relação com as pessoas consiste em discutir com elas e criticá-las. Foi isso que me afastou delas, por vontade própria… isso tornou minha velhice solitária”.
A essa altura, ele sabe que já não resta muito tempo de vida e então começa a questionar o real sentido de existir, já que no fim, independente do que você tenha construído durante o tempo em que respira, de nada vale, já que a morte é certa.
Mesmo sendo um profissional bem sucedido e querido pelos seus pacientes, isso já não faz sentido naquele momento o que o torna prisioneiro num abismo de culpa, angústia, rancor, solidão e muita nostalgia. Durante todo o momento de sua viagem, os sonhos caminham num plano paralelo à sua realidade. Tudo é tão profundo, que durante os momentos em que Marianne conduz o automóvel, as lembranças de infância açoitam Isak fazendo com que ele mergulhe ainda mais no seu vazio afetivo. Esses sonhos o incomodam tanto, que em determinado momento ele diz à nora: “Parece que quero me dizer algo que não quero ouvir acordado: que estou morto, apesar de vivo”.
A direção de Ingmar Bergman é primorosa, deixando que o expectador seja flagelado pelas angústias vividas pelas personagens. O diretor nunca perde o foco do eixo central que é a questão do “dissolvimento do tempo”. E o faz às vezes de forma cruel. Num dos sonhos de Isak, sua prima Sarah aponta um espelho para seu rosto e diz: “É um velho assustado que logo morrerá”.
Morangos Silvestres é denso, delicado e poético: persuasivo em sua dialética. É uma obra que toca profundamente em questionamentos intrínsecos a todos nós, como a razão da existência e seu fim. Ao mesmo tempo é sensível ao expor como o tempo é bárbaro e melancolicamente deletério. É um filme que não oferece muitas esperanças. Assim como a vida.
Paulo Faria
paulossfaria@yahoo.com.br
Paulo Faria é um amante do cinema de horror e rock ‘n’ roll. É professor por formação, humorista por conveniência e escritor por aspiração.