Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Muitos anos depois, diante da folha em branco, eu havia de recordar aquela noite remota em que um livro me levou para conhecer Macondo. Minha imaginação era então uma aldeia de vinte pensamentos de barro e taquara, articulados à margem de uma vida de acontecimentos cotidianos que se precipitavam por um leito de dias corridos, desbotados e enormes como sóis pré-históricos.
Meu vocabulário era tão recente que muitas palavras careciam de significado e para mencioná-las eu precisava apontar com o dedo no dicionário. Em todas as páginas, pelo mesmo ritmo da leitura, uma plêiade de substantivos e adjetivos poéticos plantava cenários na minha imaginação e, com um grande alvoroço de metáforas e sinestesias, dava a conhecer as novas narrativas.
Primeiro mostraram as descrições. Um escritor corpulento, de bigode robusto e mãos de datilógrafo, que se apresentou com o nome de Gabriel García Márquez, fez uma mirabolante demonstração privada daquilo que ele mesmo chamava de o realismo mágico dos sábios alquimistas da Colômbia.
Foi de parágrafo em parágrafo arrastando suas frases oníricas, e todo o meu cérebro se espantou ao ver que as ideias, as recordações, os conceitos e as abstrações caíam do lugar, e as sinapses estalavam com o desespero das emoções e dos sentimentos tentando se desvencilhar, e até as lembranças perdidas há muito tempo ressurgiam onde mais tinham sido evocadas, e se arrastavam em debandada turbulenta atrás das frases encantadas de Gabriel.
“As palavras têm vida própria”, apregoava o escritor com áspero sotaque latino-americano, “tudo é questão de despertar o seu sentido.” Eu, cuja enferrujada imaginação estava sempre aquém do engenho da natureza, e até mesmo da vida prática e dos fatos concretos, pensei que era possível me servir daquelas páginas inverossímeis para desentranhar histórias da minha cabeça.
Gabriel, que era um homem honrado, admitiu-me: “Para isso mesmo que servem.” E eu já acreditava, naquele tempo, na criatividade dos escritores de modo que troquei o meu tempo e um rebanho de projetos inúteis pelas frases inspiradoras do livro.
Minha mulher, que contava com aqueles projetos para aumentar o raquítico patrimônio doméstico, não conseguiu dissuadir-me. “Muito em breve vamos ter histórias de sobra para alegrar a casa”, respondi. Durante vários meses empenhei-me em demonstrar o acerto das minhas conjecturas.
Explorei minha mente palmo a palmo, inclusive o fundo do meu coração, reescrevendo as frases de sonho e recitando em voz alta a escrita de Gabriel. A única coisa que consegui redigir foi uma história ambientada no início do século XX, com todos os seus parágrafos soldados por uma aura de mistério, cujo enredo tinha a ressonância de uma enorme fábula rural cheia de lendas.
Quando eu e os quatro pares de semana dedicados à escrita conseguimos terminar o texto, encontramos uma personagem calcificada de angústia que trazia estampado no olhar um relâmpago antigo que carbonizara, no passado, todos os seus sonhos de juventude de mulher.
A personagem não era Úrsula, nem Amaranta, nem Rebeca. Chamava-se simplesmente Madalena. E o lugar onde vivia não era a aldeia fundada pelos Buendía, mas Pedra Negra – que só foi possível recriar com palavras depois que Gabriel me levou a Macondo.
* * *
*Livre adaptação baseada no primeiro parágrafo do livro Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com