Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
No último domingo de junho, a convite da amiga Natália Xavier estive no sítio Canto do Jacu, nos arredores do povoado de São Sebastião da Barra, para uma sessão lúdica de contação de história.
Foi algo modesto, para poucas pessoas, sem os holofotes das redes que em geral destoam de momentos raros como esse. “Estamos aqui para uma imersão”, é o que disse Natália na recepção dos convidados. Uma imersão – completo eu – no poder das palavras, mas especialmente no próprio ambiente onde se realizava o evento.
É que o Canto do Jacu fica no fundo de um vale fortificado por colinas de pastagem, cafezais e um emaranhado de corredores de mata atlântica que imprimem no local um aspecto de quadro da sala dos avós. A sede é um casarão centenário restaurado, com assoalho sobre sólidos esteios de braúna, portas e janelas monumentais e um extenso alpendre circundando a frente e toda a lateral esquerda. Um dos últimos exemplares na região resistindo ao concreto que reduz o passado a ruínas e lembranças.
Quem chega à propriedade, ao atravessar a passarela que margeia um grande açude com patos e aguapés se depara com a portentosa construção do século XIX, cuja autoridade de coisa antiga nos antecipa o cenário da narrativa a ser contada – tudo ali é meio maravilhoso, como uma fábula rural, como um conto de fadas.
Enquanto Natália apresentava as dependências do casarão para alguns, outros passeavam pelas imediações, caminhando por entre as vias do jardim de acesso, pelo bosque que se extende feito um parque no quintal. Por volta das três da tarde, quando todos já se encontravam presentes, fomos chamados para a área externa, e ali, acomodados no gramado sobre almofadas e tapetes em meia-lua, recebemos Jaqueline Fraga, a contadora de histórias que nos guiaria a imaginação.
Sentada diante da pequena plateia, composta em maioria por adultos de toda idade, Jaqueline começou a narrativa ao tilintar uma minúscula sineta que pareceu nos hipnotizar. A história escolhida era “A Moça Tecelã”, de Marina Colasanti.
Conhecer uma história lendo um texto ou assistindo a uma peça é diferente de ouvi-la sendo contada por alguém. Há certas nuances do enredo, certos matizes das descrições que só o contorno da fala é capaz de realçar, como se o timbre vocal e a entonação das frases revelassem significados que nos passariam despercebidos. Jaqueline dava vida, corpo e alma a cada trecho narrado, a cada personagem modulada pelo fluxo de sua voz.
A sensação era a de que a delicadeza do estilo de Colasanti se convergia com a dicção afável de Jaqueline, projetando na realidade daquele domingo a fantasia que só a ficção permite. E que de algum modo, os detalhes da trama iam aos poucos tomando forma a partir dos elementos do lugar onde estávamos. O casarão rústico, a paisagem de roça e o céu de inverno pareciam conter algo de terra encantada. Até os bichos do mato, como as maritacas e grilos, preenchiam as pausas com seus ruídos e trinados.
Tanto que à certa altura uma família de seriemas aproximou-se do jardim e, com a elegância arisca das aves pernaltas, postou-se a meia distância auscultando o que Jaqueline contava – como também o fizeram os bois, que desceram do pasto e ficaram à espreita do outro lado da cerca, comovidos.
Ao final, depois de ouvirmos novamente a sineta levantamo-nos um a um do gramado, e como quem retorna de uma caminhada ao ar livre, comentamos a respeito do que tínhamos sentido, sobre o que há de transformador naquela e em outras histórias e a importância que elas exercem na cultura desde o princípio dos tempos.
Em seguida, nos reunimos ao redor da generosa mesa disposta no quintal, onde frutas, biscoitos, bolos e café nos lembraram, através do aroma e do paladar, que cada um de nós também temos a nossa própria história – a qual ganhava um novo capítulo pela experiência proporcionada por Marina Colasanti, Jaqueline Fraga, Natália Xavier e o sítio Canto do Jacu.
* * *
Siga o Sítio Canto do Jacu no Instagram: @cantodojacu.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com