Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Um vento chamado São João

Por aqui, entre as montanhas do leste de Minas, é o frio que determina nossos costumes e tradições.

Publicado em 30/07/2021 - 16:46    |    Última atualização: 30/07/2021 - 16:46
 

Acostumar-se ao frio é condição primária para quem vive na serra, especialmente para nós que  nascemos (ou viemos morar) na região do Caparaó onde as estações se dividem em oito meses de um prolongado inverno e quatro meses de um verão primaveril.

A lembrança mais remota que tenho dessa friagem cotidiana vem dos meus cinco anos de idade. Morávamos na comunidade da Pedra Menina, lugar onde os dias de sol não dão conta de aquecer as cachoeiras nem as noites estreladas de dezembro amenizam o sereno que desce das montanhas. De manhã cedo, apesar de irmos embrulhados em lã e flanela a caminho da escola, a brisa cortante de maio a agosto não nos deixava impunes. O nariz e as bochechas tornavam-se róseos e ardiam feito brasa, e nossas curtas canelas de moleque, de tão ressecadas ficavam ruças e trincadas como pele de elefante.

Conforme fui crescendo, percebi que o nosso frio não era apenas um elemento transitório da meteorologia local, mas uma entidade invisível entre nós a cujas regras estávamos todos subordinados. Por aqui, entre as montanhas do leste de Minas, é o frio que determina nossos costumes e tradições. A floração e a colheita do café, o hábito de esfregar as mãos sobre o fogão a lenha, a paisagem úmida da serração cortinando as várzeas, até as pesadas roupas que usamos para trabalhar ou passear são influências exercidas pelo humor do clima. Não seríamos quem somos – da forma que somos – se não fosse o frio moldando nossa rotina e nosso estado de espírito.

No entanto, apesar de convivermos com esse inverno serrano com tanta intimidade como um amigo próximo, outro dia reparei, enquanto lia no terraço, um vento que soprava mais gelado que o de costume. E me dei conta de que esse mesmo vento de temperaturas glaciais atravessa a cidade na mesma época do ano, arrebatando nossos ânimos para debaixo dos cobertores com igual urgência tanto nas madrugadas silenciosas quanto na luz do meio-dia. É um vento áspero, agudo, intransigente, de fluxo lento mas constante, sempre recorrente no final de junho ou início de julho e que dura aproximadamente uma semana.

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Então me lembrei de alguns ventos célebres ao redor do mundo que, de tão característicos, possuem personalidade própria e fazem parte do imaginário das populações de onde eles passam.

Como é o caso do Minuano, um vento sudoeste de origem polar que sopra no sul do Brasil após o outono e inverno. Presente na cultura gaúcha desde os ancestrais indígenas que o batizaram, esta corrente de ar gelado que sobe da Antártida e ricocheteia nos altos picos da Cordilheira dos Andes é citado em músicas e obras literárias como um personagem protagonista na história dos pampas.

Já na Europa, um antigo vento de proporções míticas é a Tramontana. Este “vento de terra inclemente e tenaz”, nas palavras do escritor Gabriel García Márquez, é uma forte corrente de ar seco que vem da África e assola os países do Mediterrâneo levando pó e vapores desérticos por dois ou três dias durante a primavera do hemisfério norte. Segundo os nativos mais supersticiosos do sul da Espanha e da Itália, a Tramontana traz em si os germes da loucura capazes de adoecer quem ousa atravessar o seu caminho.

Aqui, na região do Caparaó, esse vento invernal que nos acomete até os ossos não chega a possuir status de lenda, mas também é pressentido como um animal exótico que, quando nos ronda a casa, somos obrigados a trancar portas e janelas para evitar seu hálito de gelo.

Não há estudos que o comprovem, mas pela experiência popular de sucessivas gerações locais pode-se intuir que ele é resultado da massa de ar mais intensa que resfria o sudeste brasileiro no princípio do inverno. Trazida pelos ventos alísios que sopram do Atlântico, essa corrente é bloqueada pelos precipícios de pedra do pico da Bandeira – local onde se resfria ainda mais – e canalizada pelos vales entre as cordilheiras da Forquilha do Rio, do Alto das Três Cruzes e da Vargem Alegre até atingir as cidades e povoados rurais. É tão pronunciado que por onde passa vai deixando um rastro de plantações sapecadas, lábios rachados e batidas de queixo. Certamente isso explica o fato de, pelo menos uma vez por ano, haver geadas rigorosas no Vale do Paraíso e adjacências.

Geralmente quando ocorrem essas geadas – e aqui me lembro que em junho de 2017 o topo da serra cobriu-se com impensáveis trinta centímetros de gelo – é sinal de que esse “vento de montanha inclemente e tenaz” fluirá pela região, e que Espera Feliz, Caiana, Dores do Rio Preto e outras cidades vizinhas atravessarão entre cinco e sete dias ininterruptos de uma breve, porém severa, semana mais fria do ano.

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No dia em que notei esse vento de personalidade singular, cuja existência é relatada desde os mais antigos moradores da Serra do Caparaó, percebi que lhe faltava um nome que fosse tão característico como o Minuano ou a Tramontana. Desde então, passei a chamá-lo de “São João”, devido à proximidade de sua passagem com o dia dedicado ao santo.

No nosso caso, talvez venha daí a tradição de acender uma fogueira – não tanto pelo simbolismo religioso, mas para amenizar o frio que o João nos traz lá das altitudes do pico da Bandeira.

Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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