Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Um homem sem memória

Que os arquivos de nossas novas experiências tenham espaço suficiente no armazenamento das memórias que o futuro, seguramente, há de nos proporcionar.

Publicado em 27/09/2019 - 08:46    |    Última atualização: 27/09/2019 - 08:46
 

Recentemente fui acometido por um dos dilemas mais comuns da pós-modernidade e capaz de gerar danos irreparáveis a qualquer indivíduo: a súbita e instantânea perda da memória.

Mas antes que se alardeiem em comoções solidárias os amigos ou em preocupações desesperadas por parte dos familiares, adianto que não se trata de doença grave ou acidente com fratura craniana. Minha memória cerebral até que anda muito bem, obrigado. A que perdi é a memória artificial a qual a maioria de nós já não consegue mais viver sem. Refiro-me ao HD interno do meu computador.

Acontece que meu PC, um não tão antigo Asus de 1 terabyte, começou a dar sinais de cansaço e, volta-e-meia, azulava por completo a tela, travando programas no meio de trabalhos importantes ou, simplesmente, teimava em não ligar.

Após alguns reparos e formatações de rotina, Alexander, meu amigo técnico e socorrista particular de minhas ignorâncias tecnológicas, aconselhou-me: 1) jamais deixe de fazer backup, mande todos os arquivos para nuvem; 2) troque urgentemente o HD, porque este, uma hora ou outra, vai pifar.

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Apesar das recomendações do especialista, eu, um “avoado” por natureza e um quase-totalmente desprendido das ações práticas do dia-a-dia, procrastinei o quanto pude a imprescindível providência e não tomei as devidas precauções. Até que um dia a profecia se cumpriu. Meu computador apagou a tela e nunca mais reiniciou. Ao ser consultado, Alexander, o técnico, do alto de sua autoridade nos assuntos da computação, proferiu-me aquela sábia e milenar sentença que até agora reverbera na burrice de minha lerdeza: “amigo, eu te avisei!”

O resultado desse meu pequeno drama tecnológico é que perdi cerca de oito anos de conteúdo arquivado: obras clássicas em formato PDF, a discografia inteira de MP3 do Pink Floyd, fotos de quando ainda tinha todos os meus fios de cabelo, pastas de questões, atividades e simulados que utilizo no ofício de professor, poemas inacabados, projetos de livros que nunca escrevi, rascunhos de crônicas e outros textos inéditos que nem recordo mais o título e mais uma lista absurda de coisas que, para evitar maiores aborrecimentos, prefiro nem lembrar.

Mas, otimista convicto que sou e, depois de superados os abalos que esta aterradora notícia me causou, procurei olhar a tragédia pelo lado bom e tirar o melhor proveito da situação. Com isso, aprendi que a tal “nuvem” não é apenas um artifício vago e ou metáfora abstrata do universo da informática, e sim um recurso necessário e indispensável que, com dois ou três cliques, evitamos fadigas como esta que podem se desdobrar em danos irreparáveis, como a perda de uma fotografia antiga a qual ninguém mais teria uma cópia salva.

Aproveitei também para fazer minhas estranhas e despretensiosas reflexões filosóficas e interpretei o episódio como um sinal de amadurecimento pessoal. Isto é, às vezes o acúmulo de arquivos que armazenamos na memória – e agora me refiro à nossa memória cerebral – é justamente o que nos impede de seguir em frente. Pois o passado, que deveria ser apenas referência para que velhos erros não sejam repetidos, acaba nos ancorando num remanso de conforto e comodismo que nos faz esquecer que é o futuro o lugar de onde deverá surgir nossas melhores e mais inesquecíveis lembranças. Bastando-nos, para isso, entender que a vida é um mecanismo muito mais surpreendente e fascinante do que qualquer inovação tecnológica jamais será capaz de imitar.

Pensando assim, de vez em quando poderíamos perder de propósito nosso “HD interno” só para que cada dia nos seja sempre um recomeço. E que os arquivos de nossas novas experiências tenham espaço suficiente no armazenamento das memórias que o futuro, seguramente, há de nos proporcionar.

Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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