Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Sendo ela uma mulher da montanha, nascida e criada nas serras entre vales e colinas, quis um dia saber como era o Ano Novo visto do mar.
Talvez tivesse em si um desejo secreto, quase uma ânsia, de experimentar o primeiro sol no litoral sem que montanha alguma lhe fizesse sombra, sem que a geografia incerta das cordilheiras reduzisse em minutos ou horas o seu curso celestial. Pensava que na praia seriam apenas o horizonte, o sol e ela, num momento em que algo revelar-se-ia divinamente ao romper da aurora, como se o ano recém-nascido lhe trouxesse e trouxesse ao mundo um quê de especial. Previa ser aquele um momento mágico, salpicado apenas de brisa, maresia e esperança para um novo ano que surgiria bem ali, à sua frente, tão vivo e revigorante quanto as ondas na extensão da orla.
Então, nos últimos dias de um dezembro distante viajou para o mar. Já o conhecia de outras épocas e carnavais, já o tinha absorvido salgado e frio em cada poro da alma e se deslumbrado com sua monstruosa beleza de animal marinho. Mas vê-lo, assim, sob fogos e luzes de um Réveillon festivo seria a primeira vez, e por isso mesmo lhe manifestava aquela expectativa das coisas inéditas, o devaneio ingênuo que toma de fantasia quem está prestes a pisar uma terra desconhecida.
E assim sucedeu: em sua presença, o céu da virada debulhou-se em contas de artifício, o povo descalço na areia com calças e vestidos dobrados para pular ondinhas, músicas, brindes, abraços, preces, promessas… e ela, envolta na mais legítima sensação de novidade, estava grata por mais um ano que se fechava; alegre por mais um que se abria.
Mas ainda não se deu por satisfeita. Necessitava, ainda, ver todo o ritual se cumprir, testemunhar o primeiro sol como se ele – e só ele – sinalizasse de verdade o início de um novo ciclo. Portanto, decidida a vê-lo surgir dentro de poucas horas, despediu-se das companhias que se recolheram para dormir e passou a madrugada caminhando pela praia, sob o claro-escuro dos postes por entre as palmeias da avenida, grávida de si mesma e de todas as futuras maravilhas.
No passeio solitário distraía-se com as próprias lembranças, refazendo os cabelos que o leve sopro oceânico embaraçava, enquanto os outros que aos montes celebravam com champanhas e danças iam aos poucos se retirando até que das músicas e risadas e conversas alheias não restasse mais do que um fiapo de vozes longínquas, um alarido abafado pelas ondas que vinham se desmanchar em espumas junto à sola dos seus pés. A praia, o vento e o Atlântico inteiro, enfim, pareciam a seu dispor, objetos de cobiça dos quais ela desfrutava só e feliz.
Então, quando não havia mais o que caminhar do gigantesco parêntese que era a orla da praia, sentou-se em um ponto qualquer, despreocupada, apoiando-se sobre as mãos espalmadas para trás e os pés cavados na umidade da areia como se fosse uma sereia que se deixa hipnotizar. Dali, cintilando na massa escura da água avistou os lusco-fusco dos pesqueiros confundindo-se com estrelas, distantes do continente como distantes também velejavam os seus próprios pensamentos. Sentia-se que toda ela era um garrafa à deriva, uma mensagem aleatória endereçada à vastidão do mar.
Ficou ali por algum tempo sem saber precisar ao certo quanto tempo se passara. Até que sem aviso ou prenúncio como se pega de surpresa, reparou que a escuridão do céu, de repente, havia se transformado. Já não era assim mais tão escuro pois um manto cristalino de luz e limpidez irrompia bem ao longe como um farol a acender seu rosto. Permaneceu sentada. Mãos e pés na areia. Agora podia ver nitidamente a linha na fronteira do horizonte, uma reta sem tamanho divisando o mar, o céu e a terra. E por de trás daquela linha, bem ali, à sua frente, um halo de muitas cores começou a tomar forma: primeiro de um vermelho vivo; em seguida de um alaranjado quente; e, por último, de um amarelo ouro como se um baú de tesouro, pouco a pouco, estivesse sendo aberto.
Quando o sol, finalmente, despontou, tremulante e sem montanhas para lhe fazer sombras, ela sentiu ser mesmo a primeira a receber seus raios, a única entre sete bilhões de pessoas a testemunhar tão belo e simples acontecimento. Ali, sentada na areia, sentiu-se translúcida, alvejada de luz, clarificada de paz, de esperança e de sol.
Na orla, os que passeavam logo cedo com seus cães pela calçada não perceberam que aquela mulher estava em completo estado de graça.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com