Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Um conto de Ano Novo

Mas ainda não se deu por satisfeita. Necessitava, ainda, ver todo o ritual se cumprir, testemunhar o primeiro sol como se ele – e só ele – sinalizasse de verdade o início de um novo ciclo.

Publicado em 30/12/2022 - 14:17    |    Última atualização: 30/12/2022 - 14:17
 

Sendo ela uma mulher da montanha, nascida e criada nas serras entre vales e colinas, quis um dia saber como era o Ano Novo visto do mar.

Talvez tivesse em si um desejo secreto, quase uma ânsia, de experimentar o primeiro sol no litoral sem que montanha alguma lhe fizesse sombra, sem que a geografia incerta das cordilheiras reduzisse em minutos ou horas o seu curso celestial. Pensava que na praia seriam apenas o horizonte, o sol e ela, num momento em que algo revelar-se-ia divinamente ao romper da aurora, como se o ano recém-nascido lhe trouxesse e trouxesse ao mundo um quê de especial. Previa ser aquele um momento mágico, salpicado apenas de brisa, maresia e esperança para um novo ano que surgiria bem ali, à sua frente, tão vivo e revigorante quanto as ondas na extensão da orla.

Então, nos últimos dias de um dezembro distante viajou para o mar. Já o conhecia de outras épocas e carnavais, já o tinha absorvido salgado e frio em cada poro da alma e se deslumbrado com sua monstruosa beleza de animal marinho. Mas vê-lo, assim, sob fogos e luzes de um Réveillon festivo seria a primeira vez, e por isso mesmo lhe manifestava aquela expectativa das coisas inéditas, o devaneio ingênuo que toma de fantasia quem está prestes a pisar uma terra desconhecida.

E assim sucedeu: em sua presença, o céu da virada debulhou-se em contas de artifício, o povo descalço na areia com calças e vestidos dobrados para pular ondinhas, músicas, brindes, abraços, preces, promessas… e ela, envolta na mais legítima sensação de novidade, estava grata por mais um ano que se fechava; alegre por mais um que se abria.

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Mas ainda não se deu por satisfeita. Necessitava, ainda, ver todo o ritual se cumprir, testemunhar o primeiro sol como se ele – e só ele – sinalizasse de verdade o início de um novo ciclo. Portanto, decidida a vê-lo surgir dentro de poucas horas, despediu-se das companhias que se recolheram para dormir e passou a madrugada caminhando pela praia, sob o claro-escuro dos postes por entre as palmeias da avenida, grávida de si mesma e de todas as futuras maravilhas.

No passeio solitário distraía-se com as próprias lembranças, refazendo os cabelos que o leve sopro oceânico embaraçava, enquanto os outros que aos montes celebravam com champanhas e danças iam aos poucos se retirando até que das músicas e risadas e conversas alheias não restasse mais do que um fiapo de vozes longínquas, um alarido abafado pelas ondas que vinham se desmanchar em espumas junto à sola dos seus pés. A praia, o vento e o Atlântico inteiro, enfim, pareciam a seu dispor, objetos de cobiça dos quais ela desfrutava só e feliz.

Então, quando não havia mais o que caminhar do gigantesco parêntese que era a orla da praia, sentou-se em um ponto qualquer, despreocupada, apoiando-se sobre as mãos espalmadas para trás e os pés cavados na umidade da areia como se fosse uma sereia que se deixa hipnotizar. Dali, cintilando na massa escura da água avistou os lusco-fusco dos pesqueiros confundindo-se com estrelas, distantes do continente como distantes também velejavam os seus próprios pensamentos. Sentia-se que toda ela era um garrafa à deriva, uma mensagem aleatória endereçada à vastidão do mar.

Ficou ali por algum tempo sem saber precisar ao certo quanto tempo se passara. Até que sem aviso ou prenúncio como se pega de surpresa, reparou que a escuridão do céu, de repente, havia se transformado. Já não era assim mais tão escuro pois um manto cristalino de luz e limpidez irrompia bem ao longe como um farol a acender seu rosto. Permaneceu sentada. Mãos e pés na areia. Agora podia ver nitidamente a linha na fronteira do horizonte, uma reta sem tamanho divisando o mar, o céu e a terra. E por de trás daquela linha, bem ali, à sua frente, um halo de muitas cores começou a tomar forma: primeiro de um vermelho vivo; em seguida de um alaranjado quente; e, por último, de um amarelo ouro como se um baú de tesouro, pouco a pouco, estivesse sendo aberto.

Quando o sol, finalmente, despontou, tremulante e sem montanhas para lhe fazer sombras, ela sentiu ser mesmo a primeira a receber seus raios, a única entre sete bilhões de pessoas a testemunhar tão belo e simples acontecimento. Ali, sentada na areia, sentiu-se translúcida, alvejada de luz, clarificada de paz, de esperança e de sol.

Na orla, os que passeavam logo cedo com seus cães pela calçada não perceberam que aquela mulher estava em completo estado de graça.

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Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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