Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Só em tempos de rios transbordando avenidas, deslizamentos de terra interrompendo passagens, terremotos improváveis desmontando cidades e pandemias medievais isolando nações é que notamos a dinâmica devastadora da natureza.
Embora em escala geológica não passem de pormenores da rotina do planeta, catástrofes e desastres naturais despertam terror não apenas pelos danos que nos causam, mas por desvelarem nossa absoluta fragilidade diante deles.
Sobre isso, há alguns anos estive no epicentro de duas rigorosas tempestades de verão. O que a princípio parecia corriqueiro – como as chuvas passageiras que refrescam a tarde – transformou-se em experiências extremas cujo espanto até hoje assombra minhas lembranças. Abaixo, seguem os relatos dos episódios que testemunhei:
1– “Carnaval de 2006. Estamos acampados no Parque Nacional, a 1900 metros de altitude onde as ruínas do antigo rancho da Macieira guardam o passado misterioso do Caparaó profundo. Às três da tarde, enquanto atravessamos as pantanosas trilhas de acesso à Cachoeira do Aurélio, um gigantesco bloco de nuvens de chumbo abrevia o sol e anoitece o azul turquesa de fevereiro. Apertamos o passo. Chegamos ao camping junto às primeiras gotas explodindo no solo. Abrigamo-nos na barraca como se sua fina camada impermeável de poliéster pudesse nos manter a salvos. Segundos depois, desabam-se sobre nós não a chuva torrencial previamente anunciada, mas raios e trovões inaugurando cataclismos entre céu e Terra. Na sequência, rajadas de vento desancoram os grampos que fixam a lona ao chão. Para que o vendaval não nos arremessa aos ares junto com a tenda, saímos e seguramos firmes as frágeis varetas de fibra que a sustentam como fazem os marujos ao mastro para se defenderem das tormentas. Descalços e sem camisa, temos a pele metralhada por projéteis de areia e granizo disparados pelos vórtices que rodopiam ao nosso redor. Atraídos pelo subsolo rochoso de eras pré-cambrianas da serra, relâmpagos rabiscam aranhas luminosas sobre nossas cabeças e estouram feito lanças de fogo no gramado entre o vão das barracas. Tudo acontece rapidamente. O centro nevrálgico da tempestade parece nos prender em um lapso temporal. Horas, minutos e segundos perdem o sentido. Para além daquela bolha que nos cerca – dentro da qual medo, desespero e impotência se fundem em um só sentimento – os relógios talvez transcorram normalmente. Abafando nossos gritos de pavor, trovoadas ecoam pelas montanhas feito bestas selvagens rugindo à nossa espreita. É quando o inimaginável acontece: antes de calcularmos a fuga para um lugar seguro que não existe, a pesada atmosfera se desintegra no mesmo repente em que surgiu, e uma delicada brisa pulveriza no ar a curva sinuosa de um arco-íris na paisagem serrana.
Sobre o acampamento, o azul do céu recompõe nossa paz de espírito como se o mundo há pouco não fosse acabar.”
2– “Coincidentemente também é carnaval, Quarta-feira de Cinzas de 2010. Estou no terraço de um terceiro andar na rua Caiana, às cinco e meia da tarde, de onde vejo a cidade na perspectiva dos tetos. Bebo de uma xícara de café enquanto esboço num caderno velho as linhas de uma crônica qualquer. A leste, uma nuvem gigantesca se aglomera. Mas não há ventos nem trovões. Despreocupado, volto os olhos aos rabiscos que escrevo antes que o café esfrie e a ideia da frase se esvaia nos pensamentos. Mas no instante seguinte, a nuvem que há pouco não passava de um presságio se desloca feito um batalhão voador marchando firme na direção da cidade. E em poucos segundos, seu volume de tons dramáticos faz desaparecer completamente a montanha da Torre, o Mirante e o Morro do Bicudo. Espera Feliz então é engolida por uma tempestade que me faz pensar nos mais severos textos bíblicos. As casas, os quintais e os prédios à minha frente são tragados por uma avalanche fluida. A Área de Lazer, o Estádio Municipal e o Morro da Matriz reduzem-se a borrões por trás dos riscos verticais do aguaceiro. No declive das ruas, correntezas lamacentas arrastam latões e entopem bueiros com todo tipo de imundície. Acima de mim, artérias raivosas explodem reflexos de mil bombas em convulsões elétricas alvejando placas de trânsito e carros estacionados. A estrutura metálica do terraço onde estou se estremece. Estupefato, assisto o vendaval retorcer impiedoso a copa das árvores, estilhaçar vidraças, rasgar o zinco da cobertura dos prédios e mastigar parabólicas sobre dezenas de telhados. Por impulso, corro às escadas em busca de abrigo. Embaralho os passos ao chiar pelos degraus. Minha xícara se espatifa na cerâmica molhada. As folhas do caderno se vão na ventania. As roupas encharcadas esvoaçam dos varais. No fim, depois que a tormenta se dissipa – dez minutos é o tempo que dura o apocalipse – a população, assustada, sai às ruas para avaliar os estragos.
Não há alagamento ou vítimas. Mas em meio aos galhos e cacos sobre as calçadas, as poças de água suja refletem nossa cara de espanto – e a certeza de quem viu de perto o juízo final por obra da natureza.”
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com