Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Do terraço onde moro avisto um clarão surgir atrás do Morro do Cruzeiro, bem pra lá do Bairro João do Roque. Como o halo opaco dos faróis distantes de um carro, vai milimetricamente ampliando seu diâmetro num gigantesco arco luminoso sobre a noite de Espera Feliz.
A olho nu, vigio em silêncio o fenômeno resplandecente quando, de repente, a Lua irrompe grávida à minha frente, rasgando o lençol escuro do céu num reflexo de luz tão potente que um cordão de rabiscos irregulares vai se desenhando no relevo das montanhas.
Ao expectador, sua imaculada beleza chega a ser indecente, uma afronta aos corpos celestiais à sua volta que, apesar de ganharem em magnitude de tamanho, perdem em presença e brilho por suas distâncias astronômicas. É como se diante de mim flutuasse uma pérola gigante, um artefato se destacando a milhares de quilômetros num mar negro de constelações cintilantes.
Conforme ela avança cândida e branda, penso no poder que ela tem de nos abismar. Fôssemos nós répteis ou símios, haveríamos de nos despertar por ela este mesmo fascínio, humanos que somos? O certo é que não precisa ser poeta para que sua imagem nos impressione, pois se até coiotes à beira do precipício uivam comovidos sob a luz do luar…
Da insignificância do terraço onde estou, medito como seria nos vermos de lá, da mesma perspectiva onde a Lua está. Saberíamos da agonia dos que aqui existem? Da cruel divisa entre luxo e farrapos? Da vocação que temos para cultivar mazelas? Mas como um impossível astronauta, conformo-me em daqui do chão apenas olhar para ela.
Ela, que antes de se revelar a mim disseminou fulgor sobre savanas e desertos, sobrevoou o Atlântico acalentando a insônia de baleias e cargueiros, invadiu o continente, cidades, rios, pontes e florestas, projetou fantasmas na sombra das rochas do Pico da Bandeira, atravessou rutilante açudes e córregos do Vale do Paraíso, clareou platibandas de lavouras de café da Vargem Alegre… Ela, que findado seu ciclo no horizonte estreito da minha janela, preencherá o céu de distantes povos que a chamarão cada qual por diferentes nomes, ensejará pré-histórica sobre tribos amazônicas, nas aldeias de pedra dependuradas nos Andes e no espelho dos lagos das planícies do Atacama… E quando for noite na parte do mundo onde agora é dia, a luz desta mesma lua celebrará sagrada enigmáticas esculturas, cruzará arquipélagos remotos da Polinésia, provocará marés na bacia do Pacífico, guiará rituais em cirandas aborígenes, permeará arrozais de vilas vietnamitas e penetrará sublime em mantras eremitas dos monges que meditam nas montanhas do Tibet…
Mesmo assim, satélite pertencente a todas as pátrias, é como se a Lua fosse só minha quando olho para ela daqui de casa.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com