Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Satélite particular

Conforme ela avança cândida e branda, penso no poder que ela tem de nos abismar.

Publicado em 07/05/2020 - 16:11    |    Última atualização: 07/05/2020 - 16:11
 

Do terraço onde moro avisto um clarão surgir atrás do Morro do Cruzeiro, bem pra lá do Bairro João do Roque. Como o halo opaco dos faróis distantes de um carro, vai milimetricamente ampliando seu diâmetro num gigantesco arco luminoso sobre a noite de Espera Feliz.

A olho nu, vigio em silêncio o fenômeno resplandecente quando, de repente, a Lua irrompe grávida à minha frente, rasgando o lençol escuro do céu num reflexo de luz tão potente que um cordão de rabiscos irregulares vai se desenhando no relevo das montanhas.

Ao expectador, sua imaculada beleza chega a ser indecente, uma afronta aos corpos celestiais à sua volta que, apesar de ganharem em magnitude de tamanho, perdem em presença e brilho por suas distâncias astronômicas. É como se diante de mim flutuasse uma pérola gigante, um artefato se destacando a milhares de quilômetros num mar negro de constelações cintilantes.

Conforme ela avança cândida e branda, penso no poder que ela tem de nos abismar. Fôssemos nós répteis ou símios, haveríamos de nos despertar por ela este mesmo fascínio, humanos que somos? O certo é que não precisa ser poeta para que sua imagem nos impressione, pois se até coiotes à beira do precipício uivam comovidos sob a luz do luar…

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Da insignificância do terraço onde estou, medito como seria nos vermos de lá, da mesma perspectiva onde a Lua está. Saberíamos da agonia dos que aqui existem? Da cruel divisa entre luxo e farrapos? Da vocação que temos para cultivar mazelas? Mas como um impossível astronauta, conformo-me em daqui do chão apenas olhar para ela.

Ela, que antes de se revelar a mim disseminou fulgor sobre savanas e desertos, sobrevoou o Atlântico acalentando a insônia de baleias e cargueiros, invadiu o continente, cidades, rios, pontes e florestas, projetou fantasmas na sombra das rochas do Pico da Bandeira, atravessou rutilante açudes e córregos do Vale do Paraíso, clareou platibandas de lavouras de café da Vargem Alegre… Ela, que findado seu ciclo no horizonte estreito da minha janela, preencherá o céu de distantes povos que a chamarão cada qual por diferentes nomes, ensejará pré-histórica sobre tribos amazônicas, nas aldeias de pedra dependuradas nos Andes e no espelho dos lagos das planícies do Atacama… E quando for noite na parte do mundo onde agora é dia, a luz desta mesma lua celebrará sagrada enigmáticas esculturas, cruzará arquipélagos remotos da Polinésia, provocará marés na bacia do Pacífico, guiará rituais em cirandas aborígenes, permeará arrozais de vilas vietnamitas e penetrará sublime em mantras eremitas dos monges que meditam nas montanhas do Tibet…

Mesmo assim, satélite pertencente a todas as pátrias, é como se a Lua fosse só minha quando olho para ela daqui de casa.

Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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