Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
São 19:35h no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro. Estamos no Bar Super Guanabara, um boteco na esquina da rua Félix da Cunha e avenida Conde do Bonfim. Sentados ao redor de duas mesas plásticas com propaganda da Itaipava, entre outras espalhadas pela larga calçada à margem da avenida, assistimos ao (já para lá de clássico clichê) jogo do Fla x Flu, exibido pela TV de led acima do balcão.
Enquanto os faróis que zunem em sentido único nos iluminam sob as sombras das castanheiras, nosso grupo de amigos, composto por mineiros e cariocas, conversa trivialidades de sábado à noite e bebe Amstel – não por ser moda consumir cerveja importada, mas por valer o custo/benefício em relação às marcas nacionais.
Entre o ruído das buzinas e o som de Hear Me Now do Alok tocando no smartphone da mesa ao lado, ouvimos um estrondo vindo de qualquer canto obscuro da Cidade Maravilhosa. Interrompemos os risos e questionamos a procedência da explosão: rojão? granada? dinamite em caixas eletrônicos?
É quando o grupo começa a falar sobre a recente intervenção federal no Rio de Janeiro. Entre opiniões dos que defendem e dos que contestam a medida assinada pelo Vampirinho de Brasília, chegamos à conclusão unânime de que pouco importa combater o crime da cidade (e do resto do país) se as principais medidas intervencionistas não forem tomadas em caráter de urgência em favor da sociedade. O grupo argumenta: investimentos sérios em educação e saúde; reformas tributária e política; desburocratização para novos empreendimentos; e a discussão racional, apartidária e sem preconceitos sobre novas políticas antidroga no Brasil.
Antes de trocarmos de assunto, outro estrondo de igual proporção é ouvido. Na TV, o Fluminense faz 1 x 0.
Pedimos outra cerveja e pechinchamos ao vendedor de amendoim três cones por 10 reais. Depois, perguntamos aos amigos cariocas como anda a qualidade de vida para quem mora no Rio. Como são jovens – o único ancião de 35 anos de idade à mesa, no caso, sou eu – todos falam das possibilidades de entretenimento que a cidade oferece, desde os bares badalados da Lapa e as praias de Copacabana/Ipanema aos shoppings do Leblon e os frequentes shows internacionais no Maracanã. “Fora os custos, que são astronômicos, a sensação de constante insegurança nos prende cada vez mais em casa”, explica um deles enquanto ouvimos um terceiro estrondo – Fluminense 2 x 0.
A banda mineira da mesa complementa a pauta explanando acerca de Espera Feliz, tanto do nosso melhor quanto do pior. Falamos das cachoeiras, das novas cafeterias, dos bares da Rua Henrique Gripp e de que, apesar de poucas oportunidades de trabalho, a cidade ainda conserva, de certo modo, suas principais virtudes interioranas de civilidade, respeito ao próximo e, principalmente, a segurança de se caminhar à noite sem a iminência de sofrer arrastões ou assaltos à mão armada – ao que os companheiros cariocas observam: “houve um tempo em que o Rio era assim, mas foi lá pelos anos de 1930”, ironiza um deles deixando transparecer um pingo de inveja no canto dos lábios.
Enquanto o garçom nos serve outra Amstel, o Fluminense faz 3 x 0, seguido de mais um estrondo que, a essa altura, já nos soa tão comum quanto o hálito abafado desta noite de sábado.
Para os cariocas, assim como para todos nós que turistamos na cidade grande, a situação de violência no Rio de Janeiro tornou-se tão corriqueira que a percepção da inversão de valores é cada vez mais nítida: o “medo” sobressaindo à “tranquilidade”, a “esperança” sucumbindo ao “apocalipse” e a “desconfiança” arrasando com a “fé no homem”. Uma cidade vencida pelo paradoxo onde o “anormal” é comumente aceito com “normalidade”.
Pouco antes de pedirmos a conta, um transeunte nos alerta de um assalto que acontece neste exato instante em uma das lojas da rede Americanas Express, na outra margem da Conde do Bonfim, a cinquenta metros de nós. Segundos depois, dois meliantes saem em disparada do estabelecimento e trepam, cada qual, na garupa de duas motocicletas que os aguardam à beira da calçada. E aceleram avenida a fora.
Cá nas mesas do Bar Super Guanabara, como se nada tivesse acontecido, todos retornam às suas cervejas e voltam seus olhares para a TV de led sobre o balcão, onde o Fluminense faz 4 x 0 em cima do Flamengo – e um último estrondo indecifrável ecoa por entre as ruas “normais” do Rio de Janeiro.
Por Farley Rocha. Foto de Cesar Augusto.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com