Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Há motivos para a existência das montanhas? Ou ainda: para que servem as montanhas quando se vive ao pé de uma?
É o que pergunto todos os dias quando abro a janela e me deparo com um mastodonte de terra espreitando a cidade por entre as nuvens.
Então, para dar sentido ao que não há respostas costumo conjecturar alguma razão possível, uma razão que decifre ou pelo menos justifique os mistérios geológicos da paisagem que me cerca e que de algum modo secreto me intriga. Afinal, milhões e milhões de toneladas de matéria mineral não foram depositadas ali à toa, num murundu monumental que parece arranhar o céu apenas para ornamentar o mundo como um capricho exagerado de Deus – muito embora, convenhamos, o mundo seria bem menos sedutor sem as curvas desenhando a cintura do horizonte.
Por isso, quando olho para o monte, tão perto por ser onipresente às vistas e também tão longe por ser alto e inacessível, sou impelido a forjar na interrogação de suas origens minha íntima exclamação: “planejo para ti, oh bruta e majestosa montanha, o que bem quero, croqui para a arquitetura dos meus sonhos!” – não tão assim, como um verso tolo de poeta pedante, mas com a sinceridade sem adorno que pulsa espontânea nos corações humildes.
Desse modo, mesmo em pensamento – e por direito que me concedem o devaneio e a imaginação de cronista – traço para ela um plano, um objetivo, atribuindo-lhe uma finalidade possível para que não simplesmente exista sem que haja um porquê, ainda que permaneça ali indiferente a mim e a todos, como um paquidérmico animal petrificado desde o princípio dos tempos. Então, vejamos:
1. um dia desses escalarei sua obtusa inclinação para ver com meus próprios olhos o que ela veria se olhos tivesse;
2. lá no alto, abrirei os braços como quem celebra uma conquista extrema só pela sensação de abraçar o planeta inteiro, sem culpa;
3. desfrutarei de seu privilégio panorâmico, vislumbrando quilômetros a perder de vista, para driblar a visão estreita imposta pelo quotidiano como a um detento na cela;
4. ao entardecer, deitarei sobre a relva que resiste às intempéries, barriga para cima, manto de brisa sobre o corpo, mãos esticadas harpejando estrelas;
5. sentirei o vento inédito perpassando-me os cabelos, ouvindo-o no farfalhar das árvores como se a montanha me assoviasse uma canção de ninar;
6. adormecerei na rutilância alva da lua, que, pela proximidade, ensejará poesia na substância dos meus sonhos;
7. por fim, acordarei refeito das mazelas da rotina e, pelo fato de ser o primeiro a ver o sol despontar lá do outro lado, olharei a cidade cá embaixo, com suas luzes ainda acesas, como uma terra de esperança amanhecendo novas possibilidades.
Assim, poderei enfim retornar ao chão, pisar novamente o chão com a leveza adquirida com a sabedoria das nuvens, realizado, satisfeito. Como um alpinista que faz da montanha um plano piloto para um dia pleno.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com