Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Em frente ao Calçadão de Espera Feliz existe uma construção que se destaca entre as outras como uma torre retangular fincada bem no centro da cidade: um prédio de dez andares que pode ser visto até dos bairros mais distantes.
Como a obra está parada há anos, com suas paredes externas permanentemente cinzas de cimento virgem, todos os seus apartamentos encontram-se desabitados – exceto pelo andar térreo, onde há instalada uma agência bancária ao lado de lojas e boutiques da avenida João Sebastião de Amorim.
Mas além de seu aspecto colossal, que confere à Espera Feliz certo ar cosmopolita de cidade grande, havia algo que me chamava a atenção. Do terraço de onde moro, a duas ruas atrás deste gigante de concreto, podia ver que nele haviam sim alguns insuspeitados residentes. Sem que ninguém desse conta, com o passar do tempo eles foram pouco a pouco invadindo o edifício, apossando-se de seus espaços vazios e transformando suas janelas mais altas em portas de entrada e saída: os moradores clandestinos, na verdade, eram dezenas de pombos que circulavam diariamente pelo prédio como se fossem inquilinos privilegiados da melhor cobertura que temos por aqui.
Sempre nos finais de tarde, quando resquícios de sol poente matizavam de laranja o reboco pálido da construção, eu os via aterrissarem lá no topo e se aglomerarem no beiral da última laje a 45 metros do solo. Nesta hora, depois de se recolherem da rotina de passeios aéreos em caçadas de sementes e insetos pelos jardins e calçadas, pousados ali os pombos pareciam conversar entre si como vizinhos batendo papo olhando o movimento da rua.
Cá do meu terraço, num relés quinto andar de uma das ruas do antigo Laticínio, onde a única asa que tenho ao alcance é a da caneca de café que pinço com meu indicador e polegar, ficava imaginando as infinitas vantagens de se ser um pombo. Porque do alto de sua nobre morada eles eram os únicos entre nós que, sem despender de gastos imobiliários, desfrutavam de uma ampla e satisfatória vista panorâmica que alcança até muito além das raias da cidade.
De lá, com um simples golpe de vista da direita para a esquerda aquelas aves deviam ver ao mesmo tempo o alarido diurno da antiga estação ferroviária com os ônibus chegando e partindo das plataformas de pedra, os ipês floridos da Praça Cira Rosa com seus galhos povoados por bem-te-vis e coleiros, e a nuvem amarela de poeira rural suspendida pelos carros cruzando o Morro da Canoa. Para o resto de nós, animais depenados incapazes de voar, tais paisagens são vistas apenas de relance, uma de cada vez – isso quando o quotidiano não nos sucumbe a fugaz poesia das coisas simples do dia a dia. Mas para aqueles pombos, cuja aerodinâmica do corpo os alça a uma espécie de condição onipresente, nem mesmo o céu chega a ser o limite.
Há quem maldiga a presença dessas aves sob o pretexto de que transmitem moléstias e que não passam de pragas urbanas. Mas eu, que tenho em São Francisco de Assis um dos meus santos favoritos, julgo ser de alto escalão o pecado imperdoável de amaldiçoar passarinhos. Por isso os admiro não só pelo símbolo bíblico de pureza que cada um revela em si, mas pela liberdade que os pombos têm com seu simples ato de bater de asas – já que nós, limitados seres terrenos que somos, se comparados a eles rastejamos a passos lentos como se trouxéssemos acorrentadas aos pés imaginárias âncoras de ferro.
Por esse motivo, sempre que via os pombos no alto daquele prédio inacabado era inevitável não sentir uma ponta de inveja. Pois a qualquer instante, não importando se domingo ou quarta-feira, qualquer um deles podia voar tranquilamente para onde desejasse, substituindo o tédio rotineiro que nos consome por horizontes bem mais contemplativos que nos liberta, fosse pelas platibandas frescas dos cafezais da Vargem Alegre, pelos cumes enevoados das cordilheiras da Pedra Menina ou sobre os telhados centenários dos casarões da rua Américo Vespúcio de Carvalho.
Tudo bem que seu arrulho insosso em nada se assemelhe ao coral dos canários ao meio-dia, nem que suas penas alvinegras esbocem o esplendor exótico das plumas de um papagaio sul-americano. Mas a partir de um voo, para eles, corriqueiro, são os pombos quem vislumbram a cidade por uma perspectiva, para nós, inédita: observar do alto o traçado primitivo de cada rua, a grande árvore da Praça da Bandeira cuja copa só conhecemos a sombra, os secretos quintais frutíferos no fundo das casas da Jayme Toledo. Enquanto eu, um hominídeo classificado pela ciência o topo da cadeia evolutiva, para descer o terraço do meu quinto andar preciso recorrer à arcaica tecnologia humana das escadas.
Até que recentemente descobri que todas as janelas do grande prédio haviam sido cobertas de alto a baixo por uma comprida tela transparente. Suponho que, por medidas sanitárias, os responsáveis pela obra a enveloparam com uma rede protetora para impedir que as aves continuassem habitando o local. Desde então, despejados de seu lar artificial de concreto armado, os pombos que povoavam o céu dos meus pensamentos terrestres desapareceram da minha vista, e os únicos pássaros que continuaram atravessando minhas tardes são as garças que voam geometricamente em bandos em direção ao Rio São João.
Mas por esses dias, enquanto tomava meu café das 5h, fui surpreendido por uma visão incomum. Perto do pôr do sol, depois que uma fina chuva de primavera refrescou os ares de dezembro, um exuberante arco-íris se abriu desenhando uma boca colorida acima do enorme edifício cinzento. Pousado sobre ele pude ver que um pombo solitário observava lá do alto a brisa que ainda pulverizava sobre Espera Feliz. E por um breve instante tive a nítida sensação de que o prédio do Calçadão havia se tornado por inteiro uma imponente e lendária Arca de Noé aportada bem no centro da cidade.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com