Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Os cheiros da cidade

Basta inspirar profundo para sentirmos a cidade invadir nossos pulmões .

Publicado em 07/11/2019 - 11:37    |    Última atualização: 07/11/2019 - 11:37
 

O Perfume”, livro do alemão Patrick Süskind adaptado para cinema em 2006, conta a história de Jean-Baptiste Grenouille, jovem francês do século XVIII nascido com rara anomalia no olfato que o permite distinguir com precisão qualquer dos cheiros existentes: o aroma da maçã, mas também das sementes dentro dela, do tronco da macieira, dos galhos, das folhas, do casqueiro, da seiva, das raízes, da terra, da umidade da terra, das minhocas sob a terra. Esta capacidade sobre-humana o faz desenvolver uma obsessão por destilar, através da arte da perfumaria, o óleo essencial da fragrância perfeita, capaz de hipnotizar súditos e reis.

No nosso caso, embora só captemos um de cada vez, de todos os aromas que provamos somos capazes de armazenar não apenas suas memórias, mas também das experiências associadas a eles. É como os cheiros que permeiam a cidade, que para nós são marcas de identidade caracterizando cada rua por quais passamos.

Assim como se destacam baunilha e chocolate dos carrinhos de pipoca doce da Rua Halfeld em Juiz de Fora, canela e curry dos restaurantes asiáticos da Rue Lepic de Montmartre em Paris, mangue e pântano das bocas de lobo da avenida Ponta Verde em Maceió, Espera Feliz também exala seus cheiros, mal cheiros, odores e fragrâncias. Basta uma volta com as narinas atentas para perceber.

Por exemplo, passar pela Rua Pio XII com suas toferrações artesanais é o mesmo que visitar por um segundo nossas lembranças mais remotas. Porque o café torrado predominando desde o jardim de infância ao morro do asfalto nos devolve às manhãs distantes na casa da avó quando o aroma de café coado acordava aos poucos a casa inteira.

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Já entre o Seminário e a Cira Rosa, os salões de beleza da Rua João Carlos com seus florais de shampoo, condicionador, esfoliante de pele e creme de cabelo nos fazem lembrar de festas e comemorações importantes – e sua atmosfera difusa de perfumes e cosméticos: casamentos no Rancho Pico da Bandeira, aniversários no Sítio Tatuapé, shows no Parque de Exposições. Por mais fotografias que se tenha destes eventos, nenhuma memória fica tão cristalizada senão as que nos despertam certos cheiros.

Por outro lado, sem o glamour dos grandes momentos, mas entranhada no oxigênio de todo mineiro, flutua sobre as casinhas coloridas do morro da Major Pereira a brisa de suas chaminés acesas, desde a Igreja São Francisco de Assis ao Cemitério Velho. O delicado cheiro de fumaça no ar nos lembra as visitas que fazemos à roça de algum tio, onde broa de fubá, feijão tropeiro e milho cozido passam o dia junto às panelas de ferro sobre a chapa do fogão à lenha.

Aromas de comida que, de domingo a domingo, extasiam as noites de quem atravessa o Calçadão a passeio ou retornando do trabalho. De frente à Prefeitura até o cruzamento da Rua Henrique Gripp Filho, os quiosques de hambúrguer e cachorro-quente defumam o ar com a suculência de bacons, molhos, bifes, calabresas e queijos. Para alguns, passar por ali é tortura; para outros, deleite.

Não muito longe, como num contraste desagradável de percepções olfativas, em alguns pontos da avenida Roque Ferreira de Castro há um característico odor de ralo proveniente da galeria subterrânea. No passado, quando havia frestas sobre o córrego entre o vão de cada prédio, o fedor de esgoto era muito mais intenso. Mas hoje, ao caminhar por ali ainda sentimos o vapor inconveniente das tubulações sanitárias escapando dos bueiros.

Contudo, diferente do ar de enxofre desta rua da cidade, ao longo da avenida Fioravante Padula se alastra um aprazível aroma de lavanda e alfazema das vitrines de boutiques, lojões e sapatarias. Ao mesmo tempo, notas de almíscar, musk e âmbar da parte interna das perfumarias projetam nas calçadas estreitas a imitação do requinte de shoppings, duty frees e lojas de grife.

Um pouco mais distante do centro, o odor acre de curral na saída para São Sebastião da Barra e a poeira do Morro da Canoa pulverizando-se sobre a Reta nos fazem lembrar que Espera Feliz é, sobretudo, uma pequena cidade com sólidas raízes camponesas. No entanto, a combustão dos canos de descarga, a fumaça de óleo diesel e a borracha de freios queimados dos caminhões na José Grillo nos dão ideia, ainda que em escala reduzida, da sufocante atmosfera das metrópoles poluídas.

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Por isso, além das cores, texturas, barulhos e silêncios que compõem a personalidade de cada rua existe também um cheiro habitual que nos permite reconhecê-las e identificá-las – seja pelos crisântemos e rosas da Área de Lazer, pelo mogno serrado das madeireiras da Beira Rio, pelo churrasquinho chamuscado da Praça da Bandeira, pela peixaria instalada ao lado da ponte, pelos caixotes de frutas à porta das feiras, pelo ar que ventila das farmácias e padarias, pela florada de ipês da Praça Cira Rosa…

Para tanto, nem é preciso ter o olfato apurado como o de Jean-Baptiste Grenouille ou os instintos primários de um cão farejador. Basta inspirar profundo para sentirmos a cidade invadir nossos pulmões – e suas essências mais particulares embalsando a memória de nossas experiências.

Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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