Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

O último sol

Vislumbrávamos a cada curva uma vista diferente da região como se a paisagem às nossas costas fosse se revelando por camadas.

Publicado em 12/07/2021 - 14:40    |    Última atualização: 12/07/2021 - 14:40
 

Sommarøy é uma ilha de pescadores localizada ao norte da Noruega onde não há pôr do sol durante 69 dias do ano. O fenômeno acontece devido à sua proximidade com o Círculo Polar Ártico, o que faz com que entre 18 de maio e 26 de julho o sol apenas circule no céu, mas sem tocar o horizonte, promovendo um extenso dia com mais de dois meses de duração.

Pelo mesmo motivo, durante o inverno também não há nascer do sol na ilha entre os meses de novembro e janeiro, quando a região inteira mergulha numa profunda, gélida e interminável noite polar.

Como o tempo em Sommarøy segue uma lógica completamente diferente do resto do mundo, seus pouco mais de 300 habitantes decidiram empreender uma ousada decisão: aposentar os relógios. Já que para eles dias e noites se confundem pela ausência ou permanência da luz solar, demarcá-los pelo simples giro mecânico dos ponteiros torna-se obsoleto.

Tal deliberação foi motivada pelo fato de que, para os moradores da ilha, ter suas vidas controladas pela escala convencional de tempo chega a ser um estorvo. Pois, em Sommarøy, é comum se deparar com cenas inusitadas durante o verão, como ver crianças brincando no parquinho à meia-noite, mulheres passeando com cães na praia às duas da madrugada ou homens aparando a grama às três e meia da manhã – e tudo isso abaixo de um céu tão claro quanto um relâmpago eterno.

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Para nós, que vivemos em regiões equatoriais como o Brasil, onde as fronteiras entre dia e noite são muito bem delimitadas por duas metades iguais de doze horas de luz e escuridão, os relógios são mecanismos essenciais para determinar a rotina. Mas para quem habita os extremos polares do planeta como o povo de Sommarøy, abolir o tempo até que parece fazer bastante sentido – já que lá, horas, minutos e segundos não passam de números inventados para aprisionar a vida.

* * *

Há poucas semanas, alguns amigos e eu estivemos na Torre, o mais alto monte dos arredores de Espera Feliz, para driblar o enfado da rotina com boas doses de ar puro e natureza.

Saímos da cidade às três da tarde de um sábado de outono, e depois de deixarmos os carros na estrada rural da antiga linha férrea, percorremos a pé o íngreme caminho em zigue-zague que leva ao topo, pela parte de trás da montanha.

À medida em que subíamos, parando de tempo em tempo para recuperar o fôlego da caminhada, vislumbrávamos a cada curva uma vista diferente da região como se a paisagem às nossas costas fosse se revelando por camadas: primeiro as colinas esmeraldas dos cafezais próximos; em seguida, as linhas tortas da cordilheira da Pedra Menina; e, mais ao longe, o maciço da Serra do Caparaó com o pico da Bandeira apontando para o norte.

Uma hora e quinze minutos mais tarde, após atravessar lavouras e corredores estreitos entre a Mata Atlântica, atingimos os 1.200 metros de solo e rocha que elevam o monte. Lá de cima, como num efeito óptico de magia uma fração do vasto mundo se despontou diante de nós, com Espera Feliz em miniatura a nossos pés, o mar de morros se desdobrando em ondas à distância e um raio de 100 quilômetros de horizonte divisando as fronteiras entre céu e Terra.

Por mais acostumados a olhá-la cá de baixo, a perspectiva que se tem do alto da Torre é sempre uma sensação inédita. É como descobrir um ponto de vista novo sobre as coisas cujo cotidiano, controlado pela escala das horas e pelo ritmo da semana, nos impede de desfrutar.

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Por isso Luís abriu os braços e expeliu dos pulmões um grito de contemplação; Juliana e Renata estenderam uma toalha de piquenique sobre a grama; Eduardo retirou da mochila os utensílios para coar um Café do Zé; Mara e Thiago fizeram fotografias à beira do precipício; e eu conectei à JBL uma playlist de Milton e de outras canções obscuras da América do Sul.

O sol que já estava a menos de três dedos para tocar o chão seguiu sua rota e, pouco a pouco, tudo o que a vista alcançava ao redor – serras, florestas, fazendas e vales – foi submergindo sob o manto escuro do crepúsculo. Abaixo de nós, a cidade acendia suas luzes como se os postes fossem velas de um imenso bolo de aniversário.

Exatamente às 17:16h as nuvens rosas na linha do poente decretaram a noite. No entanto, sob o lusco-fusco do entardecer daquele sábado as últimas centelhas de sol continuaram a iluminar o platô da Torre, único ponto da região onde ainda era dia. Somente às 17:20h tivemos que ligar as lanternas.

Não estávamos em Sommarøy, no Círculo Polar Ártico. Mas, para nós, o topo iluminado da montanha era uma espécie de ilha onde o tempo também havia perdido o sentido – e pelo menos durante aqueles quatro minutos no limiar entre dia e noite nos sentimos livres da prisão dos relógios.

Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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