Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
A primeira vez que ouvi falar de Saci-Pererê foi no Prezinho, quando a professora leu um conto do Monteiro Lobato e nos deu uma folha em branco para que desenhássemos sua figura. Depois, acompanhei os episódios da primeira série televisiva do Sítio do Pica-pau Amarelo, produzida em 1977, da qual o moleque perneta, ao lado da Emília, era meu personagem favorito.
Até então, para mim, o Saci não passava de uma entidade fictícia do folclore brasileiro que a literatura do início do século XX havia popularizado entre crianças e adultos. Mas por volta de 1994, quando eu tinha uns doze anos de idade, a meninada do Bairro do Roque começou a espalhar o boato de que um Saci-Pererê de verdade havia sido avistado no Córrego do Chalé.
Disseram que um morador local, provavelmente sitiante ou meeiro das lavouras de café, havia perdido meia dúzia de cavalos. Durante a noite, alguém abriu a tronqueira da propriedade e quando amanheceu os animais tinham desaparecido do pasto. Só foram encontrados no final do dia, em uma das curvas da estrada do Chalé, já quase chegando no asfalto de Caiana. O curioso é que a crina dos animais estava cheia de tranças como se um par de mãos muito hábeis houvesse feito o trabalho.
O fato se repetiu por mais duas vezes: os mesmos animais, a mesma curva e as mesmas tranças.
Até que na quarta noite o proprietário decidiu vigiar. Passou a madrugada toda encostado na cerca com uma lanterna de pilhas no bolso, uma garrafa térmica na mão e uma foice de roçar pasto. Mas como havia ficado tarde e ele não pôde resistir ao sono, quando menos esperava foi surpreendido pelo barulho da tronqueira se abrindo e com o vulto dos cavalos saindo a galope. Ao bater a lanterna, a única coisa que conseguiu ver foi um rapazinho de pele negra, magrinho e espevitado, fugindo às gargalhadas montado em um dos animais.
Então o homem correu atrás do atrevido, tropeçando nas botinas e gritando feito um descompensado pela estrada do Chalé. Mas quando chegou nas curvas onde os cavalos estavam nas primeiras vezes, não pôde acreditar. Foi tomado por um misto de pavor e crise de riso ao ver, saltitando com uma perna só, um Saci-Pererê com gorro vermelho e cachimbo à boca trançando a crina dos animais ao lado da cerca de arame farpado. Antes que tivesse qualquer reação, o Saci também o viu e, entre gargalhadas e baforadas de cachimbo, desapareceu numa espiral de poeira e folhas secas que um redemoinho fez levantar do meio da estrada.
Nunca soubemos quem era o tal homem nem se essa história realmente aconteceu. Mas o fato é que nessa época, sempre que ia nadar no antigo bicão do Chalé nas tardes de domingo eu me lembrava disso. E quando retornava no final do dia, ficava observando a mata que tem naquele trecho, antes de chegar na ponte, para ver se algo sobrenatural acontecia. Entretanto, se havia mesmo um Saci morando por ali, ele nunca quis aparecer.
Até que recentemente, quando voltávamos já tarde da noite de uma reunião de amigos no Sítio Tatuapé, avistamos a traseira de um veículo acidentado no barranco de uma daquelas curvas. Paramos e fomos ver de perto o que havia acontecido. O motorista não estava no local. Apenas o automóvel, trancado e sem amassados graves, havia caído na pirambeira no meio da floresta. Como não havia nada a se fazer, retornamos para o nosso carro.
Mas quando dei a partida para irmos embora, avistei por entre as árvores no escuro um pequeno ponto luminoso tão vermelho quanto um torrão de brasa. Imediatamente lembrei daquela antiga história que me contaram, e até hoje eu não sei se o que vi era apenas um vagalume ou o cachimbo aceso do Saci-Pererê querendo fazer tranças em nossos cabelos.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com