Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Gostaria que a crônica de hoje tratasse de algo mais leve e sublime, como talvez seja sublime falar das flores da Praça Cira Rosa ou das cachoeiras cristalinas de São Domingos. Mas com o último acontecimento, cuja a dimensão nenhum de nós escapou impune, vejo-me obrigado, mais uma vez, a escrever sobre um tema já esgotado e bem menos sereno do que margaridas ou cascatas naturais: a inesperada e aterrorizante enchente de Espera Feliz.
Para quem acordou na manhã de 19 de fevereiro, uma sexta-feira úmida de um pós-carnaval que não aconteceu, e se deparou com a chuva de ritmo sólido que não cessou desde muitas horas da noite anterior, não imaginaria que no decorrer daquela mesma manhã e no resto da tarde se sentiria como dentro de um filme repetido. Um estranho déjà vu de um mesmo sonho ruim.
Porque como se já não fosse o bastante o pavor que a grande enchente de 2020 nos trouxe, com todo o caos desencadeado por ela e seus traumas ainda mal cicatrizados, a cidade foi novamente atingida por mais uma espantosa inundação exatamente 1 ano e 26 dias depois da anterior.
A sensação era a de que Espera Feliz, que sempre atraiu olhares por sua personalidade agradável e atmosfera de povoado serrano, havia repentinamente perdido sua pureza. Pois ser acometida por dois desastres naturais em um espaço de tempo tão curto como foi, chegou a levantar suspeitas de que algo por aqui estava fora do lugar.
Do contrário, como explicar a angústia de milhares de pessoas que estiveram novamente frente a frente com o perigo? Como aceitar que centenas de famílias assistiram outra vez o rio tragar seus sonhos e lutas? E, ainda mais assombroso, como entender que de uma hora para outra a cidade que conhecemos se reduziu – pelo segundo ano seguido – a um caldeirão de lama, sedimentos e escombros?
Mas a verdade é que passamos a vida tão aterrados às ilusões que criamos, tão facilmente distraídos com nossa própria insignificância, preocupados com conquistas supérfluas para satisfazer apenas nosso leviano e mesquinho egoísmo, que só quando uma tragédia coletiva acontece é que notamos o mundo em torno do qual orbitamos. E a maneira brutal como ele reage à nossa indiferença.
Não percebemos que este mundo, com toda a imponência, grandeza e autoridade que o cosmos lhe confere há bilhões de anos, é responsável por reger não só o dia e a noite, a chuva e o sol, mas também os rumos do nosso próprio destino. É ele, senhor dos mares, das estações e dos rios, a quem devemos pedir licença antes de fincar bandeiras e submeter seu chão como nosso servo e propriedade.
Assim faz parte dele o Rio São João, que antes de cruzar a cidade recolhendo nossos dejetos e imundícies, já estava por aqui reinando límpido sobre a flora e a fauna desde o princípio dos tempos, perfilando pacientemente a paisagem montanhosa que hoje nos cerca, alimentando a vida que neste mesmo vale onde Espera Feliz foi forjada seguia seu ciclo de evolução e recomeço. Um curso tão puro e natural, mas drasticamente alterado depois que chegamos com nossas máquinas de construir ruínas, com nossas ambições demolidoras disfarçadas de progresso.
Há quem o despreze negando sua importância ao violar seus limites e usurpar seus espaços. Há quem o considere uma espécie de entidade ao celebrar sua existência e reverenciar seu fluxo ancestral. Mas no fim não importa. Pecadores ou devotos, todos somos vítimas de sua implacável fúria quando o rio decide demonstrar poder se rebelando contra todos nós, ao transbordar sobre nossas casas, ruas e bairros inteiros seu monstruoso volume de águas turvas e correntezas violentas. Porque o rio é como um animal selvagem: para que seja domesticado não basta conhecê-lo; é preciso respeitá-lo.
Experiência suficiente já temos – população, autoridades, empresários – para interpretar os sinais que o rio, desde muito tempo, vem nos dando. Agora só resta saber se mudaremos de atitude em relação a ele, ou se será preciso mais uma devastadora enchente para não termos mais dúvidas do que o nosso rio é capaz.
Talvez haverá um dia em que olharemos para o São João e veremos que nele funciona um sistema muito similar ao de um organismo vivo. Que seu sinuoso trajeto, desde as minúsculas e verdes nascentes no Alto Grumarim, Taboão e Serra do Caparaó percorre até o oceano Atlântico irrigando o coração de muitas cidades, vilarejos e comunidades rurais. Que o nosso rio, este que todos os dias vilipendiamos sua dignidade ao mutilarmos suas margens, despejarmos nossos restos e alterarmos a mecânica do seu curso, flui instintivamente através dos séculos feito uma artéria da anatomia do mundo, tão pulsante quanto o sangue morno que corre em nossas próprias veias.
Então nesse dia, quem sabe, aprenderemos com quantas enchentes se faz uma cidade segura – respeitando o rio, domesticando seus impulsos selvagens – e de quantas catástrofes evitadas se faz o futuro de uma civilização.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com