Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
J. precisava mesmo era se aposentar. Mas antes que tivesse a oportunidade, o mesmo se foi, deixando sua senhora e um filho no oitavo ano escolar. Morreu na semana passada e foi velado a caixão fechado – disseram que o corpo, por algum motivo, transfigurou-se.
Funcionário público competente, J. dedicou metade dos seus cinqüenta e poucos anos de vida (e dos cabelos) aos serviços da repartição. Em meados de oitenta, J. começou a trabalhar na Prefeitura Municipal fazendo despachos tributários, e o cargo durou ao longo dos dez primeiros anos de contratação, vindo a efetivar-se posteriormente. Por questões políticas, foi remanejado para a tesouraria e, de caxias que era, dava seus pitacos também na contabilidade. Logo foi nomeado Chefe de Gabinete e assessorou dois prefeitos por duas gestões de partidos rivais. Seu mérito era reconhecido pelo seu talento e empenho. J. era assim, bom de serviço.
Mas o longo da vida pública fez J. se sentir consumido com a rotina. Àquela altura já não era mais um funcionário de repartição fixa, pois pelo tempo de casa acabou se tornando um arquivo ambulante, guardando na cabeça quase trinta anos de informações sobre os procedimentos burocráticos do município. Era solicitado em todos os setores e, geralmente, era sempre ele quem tinha a solução para resolver qualquer um dos problemas que surgissem.
Isso foi cansando J. a ponto de ele ter se acometido a duas estafas e uma ponte de safena – este último aos quarenta e cinco anos de idade.
Sua mulher vivia clamando para que tirasse uma licença ou desse entrada nos papéis da aposentadoria. Mas J. não ouvia e todos os dias, na hora em ponto, estava na prefeitura entre meio a todas as amolações do ofício.
No trabalho já não tinha mais a paciência de um principiante. Cuspia relâmpagos a todo instante e ao final de cada dia seus nervos causavam-lhe terremotos. Mas J. não tinha jeito: não afastava, não tirava uma folga, não se aposentava.
“No final deu nisso” – lamentava a viúva à cabeceira do caixão. “De tanto trabalhar, J. não teve tempo nem de desfrutar do que construiu”.
Perguntaram-na, entre palavras de consolo e pêsames, como foi que tinha acontecido. Ela, com os olhos fundos e abatidos, disse que J., há muito tempo, andava desgastado com sua vida pública. Até que na tarde anterior, assim que chegou do trabalho, quando acendeu seu cigarro habitual na varanda de casa, ele não se aguentou e simplesmente explodiu.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com