Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Quando todos da cidade já nem se lembravam mais dele, absortos em pormenores e interesses cotidianos, ele reapareceu como um forasteiro sem direção.
Era início de noite e, determinado a se infiltrar em Espera Feliz feito um espião que chega sem alarde, surgiu sorrateiro vindo do Morro da Canoa, desceu discretamente as calçadas da Reta e se camuflou entre as árvores ao longo da avenida. Anônimo, transitou por quem petiscava nas mesas do Coffee Beer e os que bebericavam taças sob os toldos da Casa Mari.
Ao chegar no cruzamento próximo ao Seminário, sondou em silêncio os passantes na porta dos comércios, os que entravam e saíam dos prédios e lojas, os que jogavam sinuca no bar do Ataíde. Quem retornava do trabalho também não deu por sua presença, nem os motoristas dirigindo com vidros abertos. Adolescentes conectados ao wi-fi da Açaiteria não perceberam quando ele passou. Somente o vira-latas que dobrava a esquina pressentiu que o forasteiro rondava por perto – num gesto instintivo, recolheu o rabo entre as pernas.
Mais adiante, marchou invisível entre os que comiam hambúrguer e churrasquinho nos quiosques do Calçadão, sem ser notado pelos que atravessavam a faixa de pedestres. Nem o blindex das vitrines das boutiques capturou seu reflexo. Caminhou flutuante como um fantasma por entre os carros, invadiu o passeio público por entre gente e placas de trânsito, e imprimiu seu espectro fluido em frente às drogarias e lanchonetes – mas ninguém percebeu sua passagem.
Disposto a ganhar de assalto os espaços da cidade e, no tempo certo, impor a quem quer que fosse sua personalidade marcante, o forasteiro seguiu pela rua do centro esquivando-se dos faróis e da claridade dos postes, cruzou a rotatória da avenida Roque Ferreira, flanou pela larga calçada em frente à Prefeitura, desviou-se dos refletores do Morro da Igreja. Apenas a imagem de São Sebastião, na torre da Matriz, o viu passar lá embaixo – enquanto o sino badalava como se anunciasse seu inesperado retorno.
Até que atingiu à Praça Cira Rosa de Assis, passando anônimo pelos que namoravam nos bancos e muretas, provocando arrepios às moças indo para a faculdade, observando de relance os viajantes na rodoviária. Num aceno inconsciente de desagrado por sua chegada, o rapaz que fumava à porta do Bar Central cruzou os braços.
Antes que todos atinassem por seu regresso, o forasteiro ainda seguiria oblíquo pela avenida Beira Rio espreitando de longe os que batiam papo no guarda-corpo das pontes. Em seguida atravessaria toda a extensão da Major Pereira – desde os botequins e mercearias da parte baixa ao Centro Espírita do José Chagrinha. Depois ganharia os bairros Santa Cecília, João do Roque e João Clara, onde crianças de pé no chão batiam bola nas ruas sem movimento.
É que o forasteiro vinha lá dos confins da serra, onde permanecera exilado durante os últimos meses entre as montanhas inóspitas do Caparaó selvagem. Por aqui, sua presença despertaria aplausos e repúdio – pois, para alguns, possuía o charme dos anti-heróis de cinema; para outros, a inconveniência rude das visitas indesejáveis.
Até que na Vila Raquel, perpendicular aos casarões da Américo Vespúcio de Carvalho, o forasteiro enfim se revelou. Ao se dar conta de que ele bisbilhotava sua casa, uma senhora correu para fechar as janelas. Com a atenção voltada para a janta no fogão, ela exclamou:
– Já é quase fim de ano e este vento frio insiste em passar por aqui…!
É que em Espera Feliz o inverno sempre chega em estações incertas, desde às manhãs ensolaradas de abril às noites chuvosas de alto novembro – como um forasteiro gelado e cinza em plena paisagem colorida de primavera.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com