Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

O forasteiro de primavera

Disposto a ganhar de assalto os espaços da cidade e impor a quem quer que fosse sua personalidade marcante, o forasteiro seguiu pela rua do centro...

Publicado em 25/11/2019 - 11:42    |    Última atualização: 25/11/2019 - 11:56
 

Foto: Farley Rocha.

Quando todos da cidade já nem se lembravam mais dele, absortos em pormenores e interesses cotidianos, ele reapareceu como um forasteiro sem direção.

Era início de noite e, determinado a se infiltrar em Espera Feliz feito um espião que chega sem alarde, surgiu sorrateiro vindo do Morro da Canoa, desceu discretamente as calçadas da Reta e se camuflou entre as árvores ao longo da avenida. Anônimo, transitou por quem petiscava nas mesas do Coffee Beer e os que bebericavam taças sob os toldos da Casa Mari.

Ao chegar no cruzamento próximo ao Seminário, sondou em silêncio os passantes na porta dos comércios, os que entravam e saíam dos prédios e lojas, os que jogavam sinuca no bar do Ataíde. Quem retornava do trabalho também não deu por sua presença, nem os motoristas dirigindo com vidros abertos. Adolescentes conectados ao wi-fi da Açaiteria não perceberam quando ele passou. Somente o vira-latas que dobrava a esquina pressentiu que o forasteiro rondava por perto – num gesto instintivo, recolheu o rabo entre as pernas.

Mais adiante, marchou invisível entre os que comiam hambúrguer e churrasquinho nos quiosques do Calçadão, sem ser notado pelos que atravessavam a faixa de pedestres. Nem o blindex das vitrines das boutiques capturou seu reflexo. Caminhou flutuante como um fantasma por entre os carros, invadiu o passeio público por entre gente e placas de trânsito, e imprimiu seu espectro fluido em frente às drogarias e lanchonetes – mas ninguém percebeu sua passagem.

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Disposto a ganhar de assalto os espaços da cidade e, no tempo certo, impor a quem quer que fosse sua personalidade marcante, o forasteiro seguiu pela rua do centro esquivando-se dos faróis e da claridade dos postes, cruzou a rotatória da avenida Roque Ferreira, flanou pela larga calçada em frente à Prefeitura, desviou-se dos refletores do Morro da Igreja. Apenas a imagem de São Sebastião, na torre da Matriz, o viu passar lá embaixo – enquanto o sino badalava como se anunciasse seu inesperado retorno.

Até que atingiu à Praça Cira Rosa de Assis, passando anônimo pelos que namoravam nos bancos e muretas, provocando arrepios às moças indo para a faculdade, observando de relance os viajantes na rodoviária. Num aceno inconsciente de desagrado por sua chegada, o rapaz que fumava à porta do Bar Central cruzou os braços.

Antes que todos atinassem por seu regresso, o forasteiro ainda seguiria oblíquo pela avenida Beira Rio espreitando de longe os que batiam papo no guarda-corpo das pontes. Em seguida atravessaria toda a extensão da Major Pereira – desde os botequins e mercearias da parte baixa ao Centro Espírita do José Chagrinha. Depois ganharia os bairros Santa Cecília, João do Roque e João Clara, onde crianças de pé no chão batiam bola nas ruas sem movimento.

É que o forasteiro vinha lá dos confins da serra, onde permanecera exilado durante os últimos meses entre as montanhas inóspitas do Caparaó selvagem. Por aqui, sua presença despertaria aplausos e repúdio – pois, para alguns, possuía o charme dos anti-heróis de cinema; para outros, a inconveniência rude das visitas indesejáveis.

Até que na Vila Raquel, perpendicular aos casarões da Américo Vespúcio de Carvalho, o forasteiro enfim se revelou. Ao se dar conta de que ele bisbilhotava sua casa, uma senhora correu para fechar as janelas. Com a atenção voltada para a janta no fogão, ela exclamou:

– Já é quase fim de ano e este vento frio insiste em passar por aqui…!

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É que em Espera Feliz o inverno sempre chega em estações incertas, desde às manhãs ensolaradas de abril às noites chuvosas de alto novembro – como um forasteiro gelado e cinza em plena paisagem colorida de primavera.

Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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