Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Sempre ouvi dizer que Espera Feliz já foi terra de grandes carnavais. Relatos dos mais experientes foliões – hoje avôs e avós sexagenários ou mais – dão notícias de um tempo em que bailes de salão regados a serpentinas, confetes e lança-perfumes contagiavam o espírito de quase todo esperafelicense.
Falam que por volta de 1970, madames, boêmios e crianças participavam da mesma alegria nos antigos bailes do Lions Clube, ao som de marchinhas eternas e batuques de bandas improvisadas. Ali, até as mais caras fantasias exibindo paetês, plumas e cores se esfarelavam pelos interlúdios da animada folia ao longo da noite. Também por esse período, nas proximidades do atual centro comercial do Calçadão, um extinto bar chamado Brasão era outro ponto de destaque carnavalesco, promovendo pequenas festas de arromba para quem comparecesse com um convite nas mãos e um entusiasmado sorriso no rosto.
Paralelo a estes bailes considerados “festas de bacana”, as camadas mais populares da cidade também se organizavam para comemorar excessos carnavalescos dos quais todos temos direito. Na avenida Roque Ferreira de Castro, quando o “corguinho” ainda corria a céu aberto, foliões vindos da Rua Pereira, Rua Nova e zona rural se misturavam na folclórica Cabana – uma espécie de “casa de shows” de estrutura rústica, que se destacava por suas paredes de esteiras de taquara e seu telhado de lona e capim. Embora não exibisse o glamour de outros salões mais requintados do momento, a alegria partilhada ali era precisamente a mesma – ainda que sob fantasias de máscaras e capas costuradas com retalho e lençóis puídos.
Depois veio a época apoteótica das escolas de samba, que se concentravam próximo à Praça da Bandeira. Em disputas mais simbólicas do que acirradas, de um lado homens e mulheres de todas as idades representavam a histórica Unidos da Major Pereira, sob o comando do Mestre Zezinho; de outro, a Escola de Samba JK, organizada com pompas e sofisticação pelo eterno Humberto Nacarati. Cada qual enfileirada em alas faiscantes e enfeitadas, com carros alegóricos e sambas-enredos autorais, desfilavam fervorosas pela Fioravante Padula no compasso de cuícas, bumbos e caixas, acenando às aglomerações nas calçadas de frente à Prefeitura e o Morro da Matriz, que aplaudiam e sambavam esfuziantes quando cada escola passava. Ao final, independente se vitoriosos ou derrotados, Baianas, Porta-Bandeiras, Mestres-salas e Reis Momos de ambas as agremiações se uniam aos expectadores à porta do Brasinha para brindarem juntos qualquer que fosse o resultado dos jurados.
Já nos anos de 1990, o carnaval de Espera Feliz foi povoado pelos blocos tradicionais da cidade – entre outros que, apesar de consagrados, não chegaram a perdurar. Havia o Bloco das Piranhas, o Bloco das Muquiranas, o Bloco do Boi Pintadinho, o Bloco do Tigrão e, o mais emblemático deles, o Bloco do Pijama. Este último, atravessando gerações e gerações, tornou-se quase um patrimônio imaterial da cultura local, pois agregava ricos e pobres em uma mesma toada de samba e diversão. Sempre às quintas-feiras, erguendo latinhas e copos descartáveis nas mãos seus foliões se concentravam no peculiar Bar do Banana e percorriam eufóricos até às ruas do centro, numa espécie de nuvem humana fantasiada com pantufas e pijamas de bolinha.
Mas nos últimos tempos, por motivos que talvez nem a internet possa explicar, a estrela carnavalesca de Espera Feliz foi aos poucos se apagando, restando apenas um arremedo do brilho que um dia emitiu. Assim, mais por obrigação do que tradição passou a ser instalado apenas um palco próximo ao Calçadão para que a população, entre meia-dúzia de barracas de drink e caip-fruta, não passasse em branco os dias de carnaval – mesmo sem escolas de samba, grandes blocos ou bailes de salão.
Contudo, 2020 parece ter sido o ano do renascimento daquelas antigas e saudosas folias do passado. Certamente motivado pelos sentimentos de união e solidariedade após a devastadora enchente, o povo novamente se mobilizou para transformar suas lágrimas em chuvas de confete e brilhos coloridos de purpurina. Tanto cidadãos quanto comércios, numa empreitada de proporções quase épicas, organizaram em menos de uma semana um modesto – e por isso mesmo espetacular – carnaval de rua solidário, para angariar fundos e donativos às famílias mais atingidas pela tragédia do fatídico 25 de janeiro.
Teve o retorno do Bloco do Pijama se concentrando, desta vez, no Bar do Alemes, shows de rock, música pop e DJ’s no mini-palco na Praça Pedro de Oliveira e o já sacramentado Bloco Coffeeliz, idealizado pelo grupo de pedal Elo das Montanhas e o Coffee Beer Petiscaria. Teve até marchinhas executadas pela turma da Banda Pedro Bernardes, atraindo personalidades da velha-guarda como Dona Elisa e seu irmão Herculano, entre outros da época de ouro do Lions Clube e do Brasão. O barato é que tudo acontecia simultaneamente, permitindo que qualquer um, a depender do gosto, da disposição e da própria lucidez, participasse de qualquer das atrações.
Ao que tudo indica, se nos próximos anos Espera Feliz mantiver este mesmo formato de folia, provavelmente a cidade reacenderá aquele antigo e divertido espírito carnavalesco, que tanto contribuiu para a formação de nossa identidade e o enriquecimento de nossa cultura. Pois este, a exemplo do que vimos, foi verdadeiramente o Carnaval de outros Carnavais!
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com