Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Vista do alto, a principal praça de Espera Feliz tem o contorno de um violão de meio braço, com o chão de pedras portuguesas formando o tampo e a circunferência do chafariz fazendo a boca do instrumento. E, para que não confundam os nomes – o que é bastante comum –, refiro-me à Praça Cira Rosa de Assis (vulgo “da Casa de Pedra”) e não à da Bandeira.
São três da tarde de uma quinta-feira ensolarada de inverno. Automóveis, motocicletas, ônibus e carretas com cubos de granito transitam pela Avenida Fioravante Padula. Entre o fluxo cotidiano dos que vêm e vão, percorro a calçada perpendicular aos canteiros floridos fazendo observações que talvez ninguém dê importância.
É que a praça em questão, cuja paisagem preenchida por arbustos, palmeiras, ipês, hortênsias e pingos d’ouro é muito mais do que um pingente colorido enfeitando o coração da cidade. Por ser público, há neste ambiente a confluência de todos os tipos e idades, crenças, sonhos e angústias. Um laboratório de assuntos corriqueiros para crônicas desajeitadas como esta.
Junto ao estalar dos passos nas vagens secas que despencam das árvores, ouço o burburinho dos que, distribuídos pelos bancos de alvenaria e madeira, ou sentados nas muretas que dividem os jardins, fazem da praça recanto para descanso ou lazer. Há senhoras com sacolas de supermercado discutindo o preço das batatas, senhores de chapéu contando casos enquanto fumam cigarros de palha e senhoritas de vestido longo lendo salmos pentecostais aos que passam.
Ao redor do chafariz, crianças alardeiam gargalhadas e correm sobre a grama. De um lado, com smartphones em punho, um pequeno grupo na faixa dos 10 anos joga Free Fire – estão todos bem vestidos, bem penteados e bem vigiados pelo olhar dos pais. De outro, um grupo de mesma idade brinca de pique e polícia-e-ladrão. Estes, os que correm, além de despenteados estão quase todos descalços – e seus pais, sabe-se lá quem são.
Mais adiante, ao lado do aquário das carpas, aposentados falam de política, futebol e do preço do café. Ao lado deles, uma jovem mãe oferece biscoitos ao filho pequeno, que chora por preferir o recheado: “se desinteirasse o dinheiro, querido, não daria pra passagem…” No mesmo instante, passa uma garota desembrulhando um sorvete da Kibon – que joga a embalagem no chão, ignorando a lixeira a dois passos de distância.
Já na parte de cima da praça, sentado nos degraus da casa de pedra, um casal de adolescentes troca beijos e juras eternas de amor sem dar conta de que ali mesmo, onde experimentam pela primeira vez a paixão, outros casais já desfizeram namoros, noivados e casamentos. A poucos metros dali, à sombra dos ramos retorcidos cobrindo o pergolado de concreto, um mendigo dorme o sono dos descontentes – na tentativa de reencontrar nos sonhos seus antigos contentamentos.
Mas na praça há também os que garantem o pão: o moleque de olhos arregalados oferecendo picolé, a carrocinha de churros espalhando uma brisa adocicada no ar, um hippie com sua arte de miçanga e bambu, a menininha com um cesto de cocadas cobertas por um pano de prato, a cigana com dentes de ouro profetizando o futuro por cinco reais… E, numa espécie de performance mística onde um círculo de curiosos se forma, um homem com jeito de índio e sotaque dos que vêm de longe anuncia raízes que curam ressaca, impotência e mau-olhado.
Enquanto atravesso a praça fotografando com os olhos suas cenas cotidianas, imagino: a maioria dos que a frequentam não faz ideia, mas sua arquitetura rústica de tons acinzentados contrastando com o verde do seu paisagismo moderno são a ponte entre presente e passado. Porque ali, no lugar onde foi erguida, junto à antiga estação de trem que ainda preserva nossas memórias, é o ponto exato onde nasceu a cidade – o trem de ferro já não há, mas o sinal Wi-Fi é liberado.
E mais tarde, quando vendedores, senhoras, crianças, pipoqueiros e cronistas desocupados forem embora, quando o abraço do casal que se beija despedir-se pelo frio da noite e uma última janela se apagar no andar superior do Hotel Montanhês, a Praça Cira Rosa de Assis parecerá um deserto inóspito sob a luz dos refletores, como se a cidade em torno dela deixasse de existir. Então, o alarido de gente desta tarde ensolarada não passará de uma lembrança surda em meio ao latido distante dos cães e o ronco dos bêbados refugiados na rodoviária.
Mas os caçadores do monumento histórico permanecerão por lá, estáticos, velando a solidão da praça como fantasmas de pedra no silêncio da madrugada.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com