Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Meandros Abandonados: os rios fossilizados do Caparaó – (capítulo I)

Também chamados de “braços mortos” e “lagos em ferradura”, esses canais primitivos constituem cavidades escavadas sobre o terreno plano que alteram drasticamente a configuração da paisagem.

Publicado em 08/02/2022 - 10:07    |    Última atualização: 08/02/2022 - 10:07
 

Apesar da conotação dramática que o nome evoca, “meandros abandonados” se referem a acidentes geográficos provocados pela dinâmica fluvial de uma bacia hidrográfica. Geralmente formados em planícies e vales, os meandros são as curvas desenhadas pela sinuosidade de um rio que, devido a fatores climáticos ou geológicos, acaba mudando de curso. Essas curvas, ao serem abandonadas pelo fluxo original das águas, tornam-se leitos secos ou pequenas lagoas em forma de “U” que evidenciam os antigos caminhos percorridos por um rio ao longo do tempo.

Também chamados de “braços mortos” e “lagos em ferradura”, esses canais primitivos constituem cavidades escavadas sobre o terreno plano que alteram drasticamente a configuração da paisagem. Assim, eles funcionam como importantes redutos ecológicos para espécies da fauna e flora, além de acumularem, abaixo de sucessivas camadas de sedimentação orgânica, abundantes propriedades fertilizantes para a agricultura e armazenarem uma infinidade de artefatos arqueológicos que ajudam a contar a história de uma região.

(Meandros abandonados na comunidade do Cruzeiro)

Na zona rural do município de Espera Feliz, nas proximidades do povoado de São Sebastião da Barra, há diversos meandros abandonados ao longo do vale. Para quem transita à altura da antiga saibreira, por exemplo, é possível avistá-los no lado esquerdo da estrada de terra, entalhados na várzea contígua às margens serpenteadas do rio São João onde a vegetação rasteira que serve de pastagem para o gado permite identificá-los com facilidade.

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(trecho meandrante do rio São João)

Mais para cima, nas proximidades das comunidades do Boiadeiro e do Cruzeiro, sempre que o curso d’água abrange terrenos largos na interseção dos morros, outros meandros podem ser vistos compondo leitos secos recobertos por capim ou dispostos em pequenas lagoas semicirculares. Estruturas parecidas também ocorrem na outra vertente da serra, em paralelo ao rio Preto, que divisa os estados de Minas Gerais e Espírito Santo, desde às baixadas da Vargem Alegre ao Vale do Paraíso.

Se observadas de relance, essas curiosas formações em meia-lua não passam de meros detalhes da geografia local. Mas o fenômeno de suas origens e os mistérios que elas ocultam podem despertar verdadeiro fascínio para quem as contempla.

“Nós que moramos próximos ao rio, de tão acostumados com a paisagem nem damos conta da existência desses canais. Mas vistos por esse ângulo [imagens de satélite], eles compõem um cenário realmente interessante, são como hieróglifos enormes rabiscados no chão”, relata Leone Maia, residente da vila de São Sebastião da Barra.

(Meandros abandonados próximos a São Sebastião da Barra)

A engenharia da natureza na formação dos meandros abandonados

A morfologia dos rios, isto é, a configuração da estrutura dos sistemas fluviais, é determinante para a formação desses braços mortos. Do ponto de vista geográfico, os cursos d’água que apresentam trechos com acentuada sinuosidade são os mais propensos, pois as curvas que compõem o trajeto desses fluxos, classificados como “rios meandrantes”, estão mais expostas à ação da erosão e ao acúmulo de sedimentos. Os rios meandrantes são comuns em bacias onde o relevo é plano, como nos territórios amazônicos e no Pantanal mato-grossense. Por isso, seu sistema de drenagem em forma de “S” é resultado da ausência de barreiras naturais como morros e paredões rochosos, permitindo que o escoamento das águas corra livremente sobre a superfície.

(Rio meandrante na bacia amazônica)
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Com o tempo, as barrancas entre uma curva e outra acabam se rompendo ou pela composição mineral frágil do solo ou pela força das correntezas em períodos de cheia, o que provoca a transposição do leito para um novo local enquanto que a parte antiga, desligada do fluxo original, termina por ficar extinta.

Conforme explica o professor Heitor Pacheco, graduado em Geografia pela Universidade do Estado de Minas Gerais, essas áreas, chamadas de “planícies aluviais”, são formações geológicas constituídas pela deposição de argila, areia e silte – espécie de fragmentos microscópicos de rocha –, caracterizando um tipo de solo relativamente pouco compactado. Assim, com o passar do tempo a parte do rio onde a corrente é mais rápida e forte passa a escavar o lado côncavo do meandro (a extremidade externa da curva); já a parte onde o fluxo é mais lento e fraco, há o acúmulo de materiais sólidos, arrefecendo o lado convexo do meandro (a extremidade interna da curva). Neste processo de alargamento de uma margem e estreitamento de outra, o rio tende a se conectar com o “S” seguinte, e a volta bloqueada deixa de se comunicar com o leito principal, originando um meandro abandonado. “Eles surgem no relevo plano, com equilíbrio entre erosão e sedimentação. Quanto mais ocorre a erosão e deposição contínua de materiais, mais acentuada se torna a curva do meandro, o que acaba por fazer com que ele se feche, separando-se do restante do canal fluvial”, explica o geógrafo.

(formação de meandros abandonados e antigos canais primitivos)

Embora o relevo onde se localiza Espera Feliz seja majoritariamente montanhoso, uma vez que seu território está inserido nos contrafortes da Serra do Caparaó, há diversos pontos em que os rios São João e Preto correm sobre pequenas planícies estabelecidas em vales entre as montanhas. São nessas áreas aluviais, espalhadas pela zona rural do município, que os braços mortos podem ser encontrados.

(Trecho meandrante do rio São João)

De acordo com estudiosos, não há um tempo estimado para a ocorrência desse processo, podendo demorar de algumas dezenas até centenas ou milhares de anos, dependendo de fatores como o perfil do solo, a velocidade das correntezas, o índice pluviométrico e a própria composição da bacia hidrográfica. Mas o resultado é um cenário surpreendente, como se esses canais esculpidos pela engenharia da natureza dessem pistas sobre o passado da região através de rios fossilizados na paisagem.

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O exemplar mais emblemático fica na comunidade de Vargem Alegre, nas margens do rio Preto, a cerca de quinze quilômetros do centro da cidade. São 22 meandros abandonados ao longo de uma extensão de 500 metros compondo um cinturão de curvas, ilhas secas e semicírculos em baixo-relevo. Com profundidade variando entre 0,70 centímetros e 1,5 metro e com largura de aproximadamente 9 metros, esses canais extintos passam despercebidos quando observados ao nível do chão. Mas se vistos de cima, como do alto de um morro ou por imagens de satélite, sua demarcação, que se confunde com o traçado de estradas vesgas no meio da pastagem, parece simbolizar um animal mitológico tatuado na superfície da várzea.

(Cinturão de meandros abandonados no rio Preto)

Nesse caso específico, o abandono desses meandros não ocorreu de modo natural, mas por intervenção humana. Para otimizar a produtividade do terreno, e evitar que o alagamento prejudicasse o plantio e a criação de gado em épocas de cheia, por volta da década de 1970 os proprietários das terras empreenderam obras de dragagem no local, tornando o rio retilíneo naquele trecho. Com a transposição artificial, o que sobrou do antigo curso foi uma sequência de linhas tortas recobertas pela vegetação, com um dos leitos destacados por uma fileira de árvores nativas que floresceram ao longo do canal.

Lagos em ferradura: berçários para a biodiversidade

(Lagos em ferradura próximos a São Sebastião da Barra)

Geologicamente, as planícies aluviais do município de Espera Feliz – precisamente no vale do rio São João e no vale do rio Preto – são decorrentes da própria erosão provocada ao longo de milhões de anos pela hidrografia local cujas nascentes se originam nas altas montanhas da Serra do Caparaó. Por isso, ao chegarem ao sopé da serra, depois de deslizarem por penhascos, grotões e gargantas na forma de cascatas e cachoeiras, as mesmas águas que talharam os vales serpenteiam em terreno plano constituindo, assim, os rios meandrantes. É justamente por conta de tais características que nestas áreas também se encontram as chamadas “planícies de inundação”.

Na temporada de chuvas na região do Caparaó, geralmente entre os meses de outubro e fevereiro, é comum avistar o transbordamento desses rios e dos córregos que neles afluem, transformando as várzeas adjacentes em gigantescos açudes de água marrom. Extensos perímetros a partir das margens funcionam como planícies de inundação, sobre as quais o volume do fluxo se espalha durante as cheias, e se retrai no período da estiagem.

Como consequência dessa dinâmica fluvial, diversos dos meandros outrora abandonados tornam a ficar alagados, formando os lagos em ferradura. Alguns permanecem cheios durante o ano inteiro, devido ao reservatório do lençol freático estar nivelado com o subsolo do curso do rio; outros tendem a absorver com rapidez a umidade, retomando sua condição de leito morto após o sol secar por completo a nata de lama lodosa decantada no fundo.

(Lago em ferradura no rio São João)

Segundo especialistas, esses meandros alagadiços, que assumem aspectos de brejo sobre o solo pantanoso, são propícios para desenvolver pequenos ecossistemas que exercem fundamental importância para a fauna e flora locais. Conforme explica o professor de Biologia Claudinei Fumian, graduado pela Universidade do Estado de Minas Gerais, nesses micro-ecossistemas de água doce, além de acumularem a carga das chuvas possibilitando o abastecimento dos aquíferos naturais, também ocorre a transposição das águas que passam de um ambiente de rio para um sistema lêntico, isto é, um ambiente de águas paradas ou com pouca movimentação. Nessas condições ocorre um importante processo de ciclagem de nutrientes, o que permite a proliferação e a manutenção de espécies que dependem desses espaços úmidos para sobreviverem. “Mesmo nos sistemas lênticos, embora limitados principalmente por seu volume, haverá um efeito positivo para a vida, apontando diversidade em toda a microbacia e nos ecossistemas do entorno”, explica o professor.

(meandros abandonados e lagos em ferradura)

A ocorrência desses lagos em ferradura, de modo geral, funciona como berçários para uma infinidade de seres que, em ambientes áridos, não teriam chance de prosperar. Além de plantas, anfíbios, moluscos, répteis e insetos que colonizam as áreas periféricas desses meandros abandonados, há também uma rica diversidade de microorganismos responsáveis pela decomposição de matéria orgânica e pela produção de oxigênio, ao lado de algas e vegetais aquáticos, através da fotossíntese. “A presença desses microorganismos, trazidos pela cheia do rio principal ou por agentes externos, é valiosa para as teias alimentares”, complementa o biólogo.

(Biodiversidade em meandro abandonado alagadiço)

Mesmo para um leigo, é possível perceber a importância desses ambientes aquáticos para diversas outras espécies como aves e pequenos mamíferos nativos da região. Basta um passeio pela zona rural, nas áreas próximas às planícies de inundação, para se deparar com revoadas de garças, quero-queros e marrecos selvagens sobrevoando os meandros na beira dos rios, além de roedores, lontras, capivaras e exemplares de quelônios que utilizam desses espaços para se alimentar e reproduzir. “Essa explosão de vida”, explica o biólogo Claudinei Fumian, “irá formar as cadeias alimentares e o equilíbrio nos ecossistemas, pois todas as espécies estão conectadas umas às outras e ao ambiente. E assim a vida vai encontrando formas diversas de manifestação”.

Prova disso é o surgimento de determinados tipos de peixes em meandros abandonados. De maneira quase miraculosa, as aves podem transpor de um local para outro as ovas de bichos aquáticos, agarradas em suas patas enquanto bebem água ou caçam nas margens do rio – o que explicaria a ocorrência de peixes nos chamados lagos em ferradura que não possuem contato com nenhum curso de água corrente.

(Lagos em ferradura na comunidade do Boiadeiro)

(Continua…)

*  *  *

(Amanhã, no segundo e último capítulo da reportagem especial “Meandros Abandonados: os rios fossilizados do Caparaó”, leia sobre a importância dos antigos canais dos rios São João e Preto em relação à agricultura, à agropecuária e à arqueologia locais.)

Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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