Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Era sábado ou domingo, não me lembro. Garimpar uma data abaixo de 35 anos sedimentados na memória não é fácil, mas o cenário e a ocasião, sim, ainda me são cristalinos como um retrato de ontem. Estávamos no riacho meu pai, meu irmão mais velho e eu.
Naquela época, apesar do clima glacial acometer Pedra Menina a maior parte do ano costumávamos descer até o rio durante as tardes de um verão que quase nunca chegava.
Era um rio estreito, e suas águas tornavam-se espumosas ao longo das corredeiras no leito cheio de pedras. Mas, apesar de chamar-se Rio Preto, era tão diáfano que dava para ver com nitidez o fundo: a superfície arenosa que tocávamos com os pés, os gravetos, os cascudos entre os seixos.
Desde as nascentes, nas franjas da serra profunda, até alcançar o perímetro da vila o rio cruzava densas florestas de copas fechadas que lhe faziam sombra – o que justificava seu fluxo de baixas temperaturas, já que cinco minutos nadando nos fazia bater o queixo.
Como na roça havia muito pouco com que se ocupar quando criança, então era o rio nossa diversão mais gratuita ao fazermos dele a extensão do próprio quintal de casa. No entanto, aparentemente inofensivo como um animal doméstico – era bastante raso e sua correnteza, fraca –, respeitávamos seu instinto selvagem. Por isso, acatando a advertência dos pais, adentrá-lo só mesmo na presença de um adulto.
Ainda que manso, em todo o seu curso havia um único local que aspirava alerta. Chamavam-no de Sumidouro. Era um trecho onde o atrito ancestral das águas escavara um lajedo, e duas grandes rochas atravessadas de uma margem a outra bloqueava a corrente gerando uma espécie de redemoinho submerso. O que passava por aquele ponto – galhos, bichos, gente – era sugado para debaixo das rochas e desaparecia sabe-se lá para onde.
Como haviam relatos sobre pessoas que se afogaram no Sumidouro, nosso pai só nos levava para nadar bem longe dali, onde o rio desenhava uma sinuosa curva abaixo do barranco que contornava a estrada. Era um lugar seguro. A profundidade, quando muito, não passava da minha cintura aos cinco anos de idade.
Contudo, foi exatamente ali, naquela tarde de sábado – ou de domingo – que me aconteceu o inesperado. Meu irmão e eu brincávamos no remanso. Meu pai, com uma vara de pesca na mão, nos vigiava atento sentado a poucos passos do rio. Eu mergulhava num espaço de um metro quadrado quando tentei me agarrar a uma pedra cujo entorno estava revestido por uma fina película de limo vegetal. Então, sem que me desse conta toda a solidez do mundo tornou-se líquida. Minhas mãos escorregaram-se da rocha e, feito uma folha seca na lâmina d’água, a correnteza me arrastou, de bruço, com pernas e braços abertos como uma pequena estrela que acabava de cair no rio.
Num instante eu me divertia, distraído; no outro, estava sendo erguido aos ares pelos braços do meu pai, tossindo água dos pulmões, buscando fôlego. Toda a ação não durou mais que um segundo, mas, para mim, experimentei pela primeira vez o clichê da eternidade.
Apesar do susto, não deixei de frequentar o rio e muito menos as cachoeiras da região onde cresci. Mas talvez esse episódio do limo de pedra explique o fato de até hoje, 35 anos depois, eu jamais ter aprendido a nadar direito.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com