Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Limo de pedra

Era um rio estreito, e suas águas tornavam-se espumosas ao longo das corredeiras no leito cheio de pedras.

Publicado em 15/12/2021 - 11:10    |    Última atualização: 15/12/2021 - 11:10
 

Era sábado ou domingo, não me lembro. Garimpar uma data abaixo de 35 anos sedimentados na memória não é fácil, mas o cenário e a ocasião, sim, ainda me são cristalinos como um retrato de ontem. Estávamos no riacho meu pai, meu irmão mais velho e eu.

Naquela época, apesar do clima glacial acometer Pedra Menina a maior parte do ano costumávamos descer até o rio durante as tardes de um verão que quase nunca chegava.

Era um rio estreito, e suas águas tornavam-se espumosas ao longo das corredeiras no leito cheio de pedras. Mas, apesar de chamar-se Rio Preto, era tão diáfano que dava para ver com nitidez o fundo: a superfície arenosa que tocávamos com os pés, os gravetos, os cascudos entre os seixos.

Desde as nascentes, nas franjas da serra profunda, até alcançar o perímetro da vila o rio cruzava densas florestas de copas fechadas que lhe faziam sombra – o que justificava seu fluxo de baixas temperaturas, já que cinco minutos nadando nos fazia bater o queixo.

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Como na roça havia muito pouco com que se ocupar quando criança, então era o rio nossa diversão mais gratuita ao fazermos dele a extensão do próprio quintal de casa. No entanto, aparentemente inofensivo como um animal doméstico – era bastante raso e sua correnteza, fraca –, respeitávamos seu instinto selvagem. Por isso, acatando a advertência dos pais, adentrá-lo só mesmo na presença de um adulto.

Ainda que manso, em todo o seu curso havia um único local que aspirava alerta. Chamavam-no de Sumidouro. Era um trecho onde o atrito ancestral das águas escavara um lajedo, e duas grandes rochas atravessadas de uma margem a outra bloqueava a corrente gerando uma espécie de redemoinho submerso. O que passava por aquele ponto – galhos, bichos, gente – era sugado para debaixo das rochas e desaparecia sabe-se lá para onde.

Como haviam relatos sobre pessoas que se afogaram no Sumidouro, nosso pai só nos levava para nadar bem longe dali, onde o rio desenhava uma sinuosa curva abaixo do barranco que contornava a estrada. Era um lugar seguro. A profundidade, quando muito, não passava da minha cintura aos cinco anos de idade.

Contudo, foi exatamente ali, naquela tarde de sábado – ou de domingo – que me aconteceu o inesperado. Meu irmão e eu brincávamos no remanso. Meu pai, com uma vara de pesca na mão, nos vigiava atento sentado a poucos passos do rio. Eu mergulhava num espaço de um metro quadrado quando tentei me agarrar a uma pedra cujo entorno estava revestido por uma fina película de limo vegetal. Então, sem que me desse conta toda a solidez do mundo tornou-se líquida. Minhas mãos escorregaram-se da rocha e, feito uma folha seca na lâmina d’água, a correnteza me arrastou, de bruço, com pernas e braços abertos como uma pequena estrela que acabava de cair no rio.

Num instante eu me divertia, distraído; no outro, estava sendo erguido aos ares pelos braços do meu pai, tossindo água dos pulmões, buscando fôlego. Toda a ação não durou mais que um segundo, mas, para mim, experimentei pela primeira vez o clichê da eternidade.

Apesar do susto, não deixei de frequentar o rio e muito menos as cachoeiras da região onde cresci. Mas talvez esse episódio do limo de pedra explique o fato de até hoje, 35 anos depois, eu jamais ter aprendido a nadar direito.

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Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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