Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Foto: Abner Almeida
Esta cidade quando hibernada em madrugadas é campo fértil para seres notívagos que rondam no escuro. Nesta hora, reservada apenas aos cães sem dono e gatos famintos, morcegos estabanados e ratos insones, é que me ponho a caminhar sob o olhar sombrio das corujas, abaixo do véu opaco da neblina fria.
Não há motivo ou objetivo aparente, senão o de desbravar uma cidade estática enquanto em sono profundo repousa sua civilização.
Feito um hominídeo sem passado ou futuro, percorro longos trechos estalando passos calçada afora, desde o desbotado prédio do Educandário Sacramentino até a parte velha da cidade. Esquivando-me dos postes e das placas de trânsito, peregrino sob as árvores da alameda em frente à Prefeitura Municipal e margeio vitrines da Fioravante Padula – lá do alto, São Sebastião me fita com seus olhos tristes no campanário da Matriz.
Neste anonimato que só às tantas da manhã nos permitem estas ruas, forjo meu efêmero deslumbramento ao desvendar o lado B de Espera Feliz, no cenário oculto de suas madrugadas. Ver a cidade em perspectiva noturna, inabitada, não desperta melancolia ou qualquer sinal de solidão. Pelo contrário, neste momento percebe-se uma paz interior delicada e ao mesmo tempo confusa, como se recortes da realidade fossem feitos de sonhos. Uma espécie de novo mundo desvelado por silhuetas e vapores.
Sigo tateando as solas na avenida e prestando atenção no efeito neon dos ipês iluminados da Praça Cira Rosa. Os janelões do Hotel Montanhês às escuras, e seu Café com o expediente já encerrado. Não existe mais ninguém além de mim e das estrelas cadentes. Quem testemunha minha vigília são só as baratas que escapolem dos bueiros e os besouros que estalam a carapaça nas portas de aço do Bar Central.
Não há ronco de motocicletas nem clarões de farol nas esquinas. Não há burburinhos sob as janelas da Major Pereira nem chiados de rádio nos botequins da Beira Rio. No sossego da noite não há nada que lembre a agitação que povoa este lugar depois que o sol nasce. A essas horas, o que preenche o vazio da cidade é apenas silêncio.
Na marcha noturna sem compromisso, sigo a trajetória sem rumo como um flâner dos filmes de antigamente, descendo pela Praça da Bandeira e alcançando os casarões da Vespúcio de Carvalho. Uma discreta brisa assopra o pó das calçadas onde papéis de bala se misturam a tocos de cigarro – ali sinto o penoso arrepio dos que dormem sob as marquises, repartindo seu sono com orvalhos e mariposas.
Esta Espera Feliz que poucos conhecem, cujo deserto se faz a partir da 00:00 hora, assemelha-se às fotografias antigas nas gavetas dos avós: tudo se apresenta em preto e branco, no contraste de sombras produzidas pela luz dos postes. E não é medo o que se sente ao presenciar o seu vazio, mas uma tranquilidade rara ao conhecê-la na intimidade, distante de suas vozes diárias e do barulho de sua rotina. Como se cada rua, esquina e prédio contassem suas histórias secretas que só os poetas conseguem ouvir.
É por isso que invejo os bêbados da rodoviária com sua admirável capacidade para habitar madrugadas.
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p.s. Versão em prosa do poema Passeio pela cidade imaginária, publicado no livro Mariposas ao Redor (clique aqui para ler o poema).
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com