
Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Navego a esmo na internet alternando janelas de redes sociais, páginas de busca e promoções de livros na Amazon Prime quando, inadvertidamente, deparo-me com um desenho de feições familiares, uma pintura de cores e formas abstratas cujos contornos esboçam o panorama de Espera Feliz.
Então me lembro de uma fotografia antiga da cidade, em preto-e-branco, dos idos de 1940 e registrada a partir do mesmo ângulo o qual a tela foi pintada. Busco em meus arquivos a cópia digitalizada para comparar as duas imagens. Resguardada a versão subjetiva do artista, em ambas vejo a mesma cena, o mesmo vale, a mesma silhueta geométrica da montanha ao fundo.
Intrigado, percebo que na página há uma sequência de outras obras reproduzindo o mesmo local, cada uma sob uma perspectiva diferente, mas sempre com a montanha quadrilátera como tema principal. Procuro outras fotografias que fiz ao longo dos últimos três anos em meu Instagram para equipará-las e, ao sobrepor as imagens, a surpresa: muitos dos elementos também coincidem como se o olhar do pintor e meu olhar de fotógrafo apontassem para a mesma direção, só que em épocas distintas.

Entusiasmado pela descoberta, pesquiso na web quem seria o artista, o nome daquele – ou daquela – que retratara Espera Feliz com a precisão de um mestre e que, por motivos obscuros, manteve-se até então anônimo de todos nós, esperafelicenses.
É quando sou tomado por um misto de espanto, êxtase e perplexidade. O pintor em questão trata-se de ninguém menos que Paul Cézanne, artista revolucionário do final do século XIX e precursor da Arte Moderna.
Paul Cézanne nasceu em 1839 na cidade de Aix-en-Provence, sul da França, e seu estilo de pintura, classificado como Pós-Impressionismo, serviu de base para o Cubismo, uma das mais importantes escolas de vanguarda do início do século XX. Tanto que o próprio Pablo Picasso, influenciado pelo trabalho do francês, reformulou sua concepção de arte considerando-o “o pai de todos nós”.
Contemporâneo de grandes nomes como Monet, Pissaro e Renoir, Paul Cézanne se distanciou de seus pares em busca de uma linguagem própria, partindo de técnicas primárias dos impressionistas como a luminosidade e o clareamento da paleta de cores para desenvolver uma fórmula em que a distorção das linhas e o uso de traços geométricos imprimissem mais solidez às pinturas.
Vendo as obras, mesmo que pela tela de cristal líquido do celular, fico imaginando o autor diante do cavalete, apinhado sob o guarda-sol no alto dos pastos, rabiscando esboços a carvão e mirando com o polegar o cenário retratado ao dar cores a uma Espera Feliz que nós, em pleno 2022, só conhecemos de registros fotográficos em tons acinzentados.

Mas então me surge a pergunta inevitável: como um ilustre artista francês, mais de 120 anos atrás, imortalizou com pincéis e tintas a paisagem montanhosa de uma cidadezinha do interior de Minas Gerais?
Poderia ser diferente, mas a resposta óbvia é que, apesar da similaridade incontestável, as telas de Cézanne não retratam Espera Feliz. Na verdade, em sua fase madura o pintor provençal dedicou-se a reproduzir os arredores pitorescos de Aix-en-Provence, sua cidade natal e lugar para onde retornava das curtas temporadas na capital francesa, sempre rejeitado pelo Salão de Paris – apesar de genial, sua ousadia e inovação estética o condenaram à mesma incompreensão à qual Van Gogh e Gauguin foram sentenciados, reconhecido somente depois de sua morte, em 1906.
A montanha, batizada de Montagne Sainte-Victoire e medindo cerca de 1.000 metros de altitude, foi palco de sua infância e juventude quando explorava trilhas, riachos e florestas junto de amigos que cresceram com ele – entre os quais se inclui o renomado escritor Émille Zola, autor do clássico naturalista Germinal. Talvez isso explique o fato de Cézanne ter pintado a escarpa rochosa quase como uma obsessão: ao todo, são mais de 80 quadros que compõem a série “Mont Sainte-Victoire”, expostos em diversos museus ao redor do mundo.
Mas se o pintor jamais esteve no Brasil, como explicar a evidente semelhança entre suas telas e a geografia serrana de Espera Feliz? Observando as imagens, é possível perceber que alguns detalhes são praticamente idênticos, como o contorno da montanha principal, suas reentrâncias e sombreamentos, o relevo das colinas laterais, o curso da estrada adjacente e até mesmo a localização das árvores.

O curioso é que a Sainte-Victoire original, se comparada a olhos nus, pouco tem a ver com a que Cézanne esquadrinhava nos pincéis; mas a Torre – nome da montanha de Espera Feliz – parece ser a mesma de suas composições.
Haveria, portanto, na percepção de Paul Cézanne um cenário diferente do que seus olhos podiam ver? Um lugar onde nunca colocara os pés mas que pintava com nitidez apenas por intuição? Na falta de uma resposta racional, talvez a semelhança seja bem mais do que mera coincidência.

Pois se o fazer artístico, em essência, independe da lógica, tal correspondência nos faz crer que a capacidade criativa de Cézanne beirava os poderes da telepatia, como se quisesse nos comunicar, através do tempo e do espaço, que Espera Feliz tem qualidades de uma verdadeira obra de arte – inspirando até mesmo quem nunca a conheceu de perto.


Por Farley Rocha.

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com