Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
(Dê o ‘Play’ para acompanhar a leitura)
É pouco mais de uma da tarde quando saio de casa, a pé. Como as aulas foram suspensas – por determinação do próprio Governo de Estado – aproveito o dia de “folga” para resolver compromissos pendentes em uma segunda-feira ensolarada de outono.
Ao cruzar a esquina da José Grillo com o Calçadão não posso deixar de notar o escasso movimento de veículos nas ruas. Como é comum para este horário, não há o fluxo desordenado de carros e nem se ouve o ranger das carretas com seus habituais transtornos no centro da cidade. Contudo, a sensação não é de tranquilidade, mas de incertezas, pois a greve dos caminhoneiros, que já dura há mais de uma semana, começa a mostrar seus efeitos colaterais até mesmo por aqui – onde ingenuamente julgamos estar imunes aos problemas do mundo.
Enquanto atravesso a avenida Roque Ferreira, lembro que há três dias, quando estive no posto da saída para Carangola na tentativa fracassada de abastecer minha moto, fui até o portal de entrada da cidade, onde dezenas de caminhões parados indicavam adesão ao movimento da greve. Puxei conversa com um dos caminhoneiros que descascava uma mexerica à beira do asfalto e perguntei sobre as expectativas das manifestações. O chofer de meia-idade, olhos claros e blusa listrada me esclareceu, com certa gravidade nas palavras, que o governo ainda não havia cedido a todos os itens da pauta de reivindicações e, por este motivo, a greve continuava por tempo indeterminado.
Agora, passando em frente à Igreja Matriz observo a abundância de vagas liberadas para estacionar. Em dias normais, quase não se acha espaço disponível por aqui nem mesmo para bicicletas.
Pela calçada da Fioravante Padula também percebo que funcionários das lojas estão à porta com os braços cruzados ou falando no WhatsApp, num claro sinal de que o comércio local sofre reflexos dessa crise sem precedentes.
Entro em dois ou três estabelecimentos nas proximidades da Praça da Bandeira, resolvo meus assuntos e paro no Bar Central, para tomar um café em pé. Do lado de dentro do balcão, ouço um dos garçons comentar que a remessa de cigarros ainda não havia chegado e que o estoque de cerveja não duraria por muito tempo. Na TV ligada acima do freezer da Kibon, um dos âncoras da GloboNews informa que o Presidente irá fazer um pronunciamento logo mais e que o sindicato dos caminhoneiros já havia feito acordo das devidas negociações com o Governo, mas “infiltrados” continuavam forçando o bloqueio das estradas do Brasil.
Ao retornar, entro em um supermercado para comprar ingredientes para o almoço de amanhã – isto se meu gás de cozinha não acabar – e vejo que algumas prateleiras já estão vazias. “E não há previsão para reposição, senhor”, é o que me avisa um dos funcionários do mercado.
Saio dali pensando sobre o que me disse, um dia antes, meu amigo Paulo Faria. O país atravessa um período de total instabilidade em vários setores. E essa crise dos transportes rodoviários nada mais é do que uma triste metáfora para o caos a que estamos submetidos. As manifestações dos caminhoneiros, por mais legitimidade que tenham, são o estopim para o colapso geral das instituições políticas nacionais e os estilhaços, que já atingem até mesmo nossos lares nestes recônditos das montanhas do Caparaó, prenunciam não só um possível estado de calamidade generalizado, mas um verdadeiro apocalipse caso a greve perdure por muito mais tempo.
Ao final da tarde, como costumo fazer em dias de folga, paro na feirinha do Bertolino para comer uma ameixa e prosear com os transeuntes. Na esquina, enquanto Bertolino acende um cigarro, somos surpreendidos por uma passeata subindo a rua José Grillo ostentando uma enorme faixa na qual se lê “INTERVENÇÃO MILITAR JÁ!”.
Então minha ameixa torna-se dramaticamente ácida ao constatar que o tal “apocalipse”, profetizado pelo meu amigo Paulo, já começa a manifestar seus primeiros e espantosos sinais pelas ruas de Espera Feliz.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com