Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Há lugares cuja energia parece vibrar em outra frequência, capaz de influenciar nosso estado de espírito e interferir na percepção que temos do mundo. Como ocorre quando se visita São Tomé das Letras, Ponta da Lagoinha, Lajedo de Pai Mateus ou Machu Picchu, onde a paisagem natural e as lendas locais compõem uma atmosfera única e contagiante. Um desses pontos especiais está bem no coração misterioso do Caparaó: trata-se do idílico vilarejo de Patrimônio da Penha.
Por questões metafísicas, neste povoado do interior do Espírito Santo, próximo à divisa com o estado de Minas Gerais, paira uma aura enigmática que há vários anos seduz nativos e viajantes. Certamente, muito desse fascínio tem a ver com a sua localização geográfica. Situada na cordilheira sul da Serra do Caparaó, a pequena comunidade – com pouco mais de cem casas e uma dúzia de ruas à sombra das montanhas – é rodeada por riachos, cascatas e reservas de Mata Atlântica que compõem um exuberante quadro impossível de passar despercebido.
Fundada por desbravadores no tempo do Império, a vila é uma das muitas que surgiram aos pés do pico da Bandeira, entre as vertentes capixaba e mineira da serra. Algumas são batizadas com nomes tão peculiares que, quando pronunciados em sequência, imprimem na região um sentidode terra encantada: Mundo Novo, Limo Verde, Santa Marta, Pedra Roxa, Santa Clara, Príncipe, Forquilha do Rio, Pedra Menina, Vale do Paraíso, Vargem Alegre. Mas nenhuma delas, por mais notável que seja, possui identidade tão distinta quanto Patrimônio da Penha, considerada por muitos um dos chakras energéticos do planeta.
Talvez essa mística esteja ligada à ação de um pequeno grupo de idealistas que, entre as décadas de 1980 e 1990, buscaram um refúgio longe das metrópoles e estabeleceram ali uma comunidade alternativa. O objetivo era uma rotina mais saudável através de práticas espirituais, alimentação orgânica e atitudes elementares como o contato direto com o ambiente natural. Assim, movidos pela intuição e um senso de rara coragem eles trocaram a tensão da cidade por um estilo de vida simples num recanto paradisíaco e remoto.
Por estarem ancorados em seitas, hábitos e doutrinas não convencionais, e por optarem por uma organização social cujos valores refletiam a irmandade e a conexão máxima entre homem e natureza, o advento do Portal do Céu (nome dado ao complexo de cabanas, chalés, choupanas e ocas construídos no meio da floresta montanha acima) foi atraindo, ao longo do tempo, gente de todo tipo e lugar com posicionamentos afins: andarilhos artesãos, terapeutas holísticos, malucos de BR, adeptos do Santo Daime, religiosos de matriz oriental, astrólogos da Nova Era e remanescentes da RevoluçãoHippie. Tanto que o local já sediou grandes encontros nacionais e internacionais de comunidades do gênero, como o ENCA e o intercontinental Rainbow.
Dessa confluência de culturas, em que a tradição rural se fundiu com filosofias e costumes sofisticados, resultou uma estética própria bastante perceptível quando se caminha pelo povoado. Intercaladas às casas de roça com janelinhas de madeira e cerca de bambu, há outras que se destacam pela extravagância das cores, com pinturas de mandalas, filtros dos sonhos, aves silvestres e arco-íris ornamentando suas fachadas. De certo modo, tal contraste realça o equilíbrio oculto que rege o lugar, já que no passado – como alguns supõem – a região foi habitada por diferentes etnias indígenas, que deixaram nas águas, no solo e nas plantas a energia de seus cultos e crenças ancestrais. Com isso, o folclore que se criou entorno da vila faz dela uma espécie de santuário, um reduto para quem busca boas vibrações.
No entanto, durante os últimos anos esse contexto ritualístico e utópicoque, até então, se articulava com certa discriçãoparece ter sido absorvido pela indústria cultural e a exploração turística. Desfrutando de atrativos naturais como cachoeiras, trilhas e o próprio cenário bucólico em que se emoldura, o Patrimônio da Penha acabou se transformando em um dos principais pontos de visitação da Serra do Caparaó. Mediante ao potencial recentemente descoberto, empreendedores locais e de fora – muitos com genuínos propósitos sustentáveis em sua forma de trabalhar – vêm investindo em estabelecimentos comerciais para atender ao fluxo de turistas que costumam lotar pousadas, campings e hostels em feriados e finais de semana.
Essa visibilidade, somada a uma crescente demanda, foi responsável por um verdadeiro boom gastronômico na localidade, que passou de um ponto isolado no mapa a um destino cobiçado. Surgiram diversos restaurantes, cafeterias e lanchonetes de diferentes nichos e propostas. Alguns, voltados para uma culinária mais rústica, oferecem um cardápio típico do interior com comida de fogão a lenha; outros, com referências de cozinha autoral, têm uma pegada mais requintada e gourmet; e há também os mais conceituais, com pratos vegetarianos que combinam sabor, simplicidade e consciência. Mas em quase todos se encontra um ar agradável de informalidade, com mesas externas sobre áreas gramadas ou distribuídas entre flores e mensageiros dos ventos no fundo dos quintais.
A reboquedessa tendência na qual esoterismo, gastronomia e ecologia se misturam, no decorrer do ano são realizados ali importantes eventos relacionados ao universo da contracultura, como o Patrimônio da Música, o Festival de Jazz e Blues, o Penha Roots e o já lendário Festival Holístico de Artes Cósmicas, que movimentam o lugarejo e cativam um público cada vez mais eclético. Embora os moradores, em certa medida, acabem tendo sua rotina de tranquilidade alterada devido ao grande número de pessoas em cada edição, os organizadores procuram mitigar os impactos através de campanhas de conscientização, que vão desde a arrecadação de donativos aos cuidados com o próprio lixo que se produz.
Contudo, essa expressiva notoriedade, vista por muitos como um fenômeno inevitável e irreversível, divide opiniões entre os locais. Se por um lado esses eventos fomentam o imprescindível desenvolvimento econômico da região, por outro – como afirmam residentes e frequentadores mais conservadores – transformam o Patrimônio da Penha numa espécie de vitrine do exótico, estimulando postagens efêmeras com hashtags #partiupatrimonio que acabam ofuscando o que o lugar tem de mais sagrado e absoluto: a paz interior e o reencontro consigo mesmo.
Mas, em contrapartida, para preservar seu aspecto original de transcendência, há também acontecimentos de menor escala promovidos por agitadores alternativos e donos de pousadas, como cursos de meditação, ioga e massagem, oficinas de poesia, teatro e cerâmica, passeios para observação de pássaros, caminhadas de purificação em meio à natureza, além de pequenas feiras de artesanato, produtos naturais e apresentações artísticas que ocorrem diariamente na pracinha do coreto. Através desses eventos, o visitante pode explorar bem de perto a intimidade da vila e ter uma experiência mais subjetiva com a proposta do ambiente.
O fato é que Patrimônio da Penha, ainda que conserve sua essência camponesa, tornou-se hoje o centro de maior manifestação multicultural das cordilheiras do Caparaó. Porque suas características particulares, além de despertarem atenção e curiosidade de brasileiros e estrangeiros, também atraem espécimes de toda tribo e estilo. São hipsters, mochileiros, músicos, ciganos, beatniks, artistas, aventureiros, cowboys, ciclistas e famílias inteiras convivendo, em relativa harmonia, pelas ruas estreitas onde sempre se vê malabaristas entretendo os transeuntes e trovadores sentados na soleira das portas. Por isso, é comum se deparar partilhando do mesmo espaço com trabalhadores rurais de chapéu de palha e enxada às costas interagindo com figuras místicas de bata colorida, cabelo rastafari e tatuagem nos braços.
Para os que vêm de fora, são justamente cenas inusitadas como essas que fazem o Patrimônio da Penha valer a pena. Porque quem experimenta a sua magia, seja num programa de domingo ou em algum de seus vários festivais, sabe que nenhum preconceito resiste à sua intrigante energia. A mesma energia que se sente reverberar ao atravessar a ponte de cordas sobre a Cachoeira do Encanto, ou em meio ao cenário primitivo da Cachoeira da Pedra Escorada, ou quando se ouve o guinchar selvagem dos barbados flutuando nas matas, ou quando se está na emblemática Casa de Vidro, no mirante do Portal do Céu, contemplando a lua ou o nascer do sol.
A intensidade dessa força telúrica, capaz de convergir pessoas, culturas e sensações, pode ser pressentida antes mesmo de se chegar ao povoado. Na estrada de acesso, é possível perceber a mudança gradativa da atmosfera ao dobrar de cada curva abaixo da cordilheira. Principalmente depois de passar pela igrejinha de Santo Expedito, plantada à direita no alto de uma colina na beira do asfalto. A partir dali, é como se o caminho adentrasse um território onírico onde o mecanismo do tempo, do clima e da realidade funcionasse segundo uma lógica própria, diferente do mundo exterior. Talvez isso explique os avistamentos de seres fantásticos pelas trilhas na encosta da montanha, como duendes tocando flauta entre árvores e cogumelos ou fadas com asas de borboleta na umidade dos barrancos.
Por isso, tão fascinante quanto uma Macondo brasileira, o Patrimônio da Penha equivale ao universo criativo de um Gabriel García Márquez. Mas, ao contrário da aldeia mítica de Cem Anos de Solidão, o efeito mágico que sua aura sugere nos parece soar bastante real.
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Patrimônio da Penha é um distrito do município de Divino de São Lourenço-ES. Está localizado às margens da estrada ES-190, na vertente oriental do Parque Nacional da Serra do Caparaó, a 237 km de Vitória, 377 km de Belo Horizonte e 472 km do Rio de Janeiro.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com