Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Cristal

Retornei às trilhas e desfiladeiros da Serra do Caparaó para realizar um feito, para mim, inédito: conquistar o geométrico e desafiador Pico do Cristal.

Publicado em 12/06/2018 - 15:32    |    Última atualização: 12/06/2018 - 15:32
 

Desde que estive lá pela primeira vez sou atraído pelo Pico da Bandeira. O que antes era apenas curiosidade, escalá-lo se tornou uma tradição que já dura quase duas décadas. É que as profundezas do Caparaó parecem possuir uma mística energia capaz de nos enfeitiçar como num ritual de renovação.

Esta estranha força que emana das cordilheiras nos faz enxergá-las não como um aglomerado monumental de rochas e precipícios, mas como uma verdadeira entidade que habita no meio de nós, influenciando nossa vida e nossos sentimentos. Tanto que ao aventurarmos por elas somos repelidos pelo cansaço físico, frio e bolhas nos pés. Mas também somos seduzidos e encorajados para superar seus obstáculos e desfrutar da recompensa de suas belezas.

Embora estas montanhas estejam sempre no mesmo lugar, o lugar onde elas estão nunca é o mesmo. A cada escalada temos a sensação de explorar um mundo diferente, com um novo clima, um novo céu, um novo sol. E não há fotografia que registre esta metamorfose da natureza se não a da câmera de nossa própria memória, pois as paisagens das quais temos o privilégio de participar são tão perturbadoras que ninguém que as conhece de perto consegue sair impune.

Mas a Serra do Caparaó, com a autoridade de seus dois milhões de anos de existência, possui uma imponência só comparável à dos deuses de civilizações remotas. Por isso, a nós que ousamos explorar suas entranhas, é necessário prestar-lhe as devidas reverências e respeitar os limites que ela nos impõe. Os antigos do Caparaó já sabiam disso e a cultuavam como fazem os devotos frente a uma catedral sagrada.

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Cá de baixo, quando avistamos seus contornos formando castelos entre as nuvens, sentimo-nos como quem olha para um território desconhecido, envolto em mistérios e segredos ocultos. Como o caso do avião Cessna que colidiu com um de seus paredões há cinquenta anos, cuja fuselagem ainda permanece guardada em algum ponto de seus vales perdidos; ou a origem da Cruz do Negro, nome do pico onde um velho caçador foi encontrado sem vida, surpreendido pela geada enquanto tentava acender a fogueira; além do lendário esconderijo das armas enterradas na época do controverso episódio da Guerrilha do Caparaó.

Porém, o que mais nos desperta fascínio não são nem tanto o espetáculo do nascer do sol visto do seu topo nem a sublime perspectiva que temos da circunferência do mundo quando olhamos lá do alto, mas a possibilidade de se pisar em seu chão pré-histórico que mantém, ainda hoje, a mesma configuração que tinha desde as eras primordiais do planeta – certamente, era esta a percepção que tinham os índios que habitaram a região muitos séculos atrás.

Por isso, como que movido por esta obsessão ancestral, retornei mais uma vez aos labirintos de trilhas e desfiladeiros da Serra do Caparaó, mas agora para realizar um feito, para mim, inédito: conquistar o geométrico e desafiador Pico do Cristal.

Orlando, Canibal e eu, uma tríade de aventureiros de final de semana, partimos de Espera Feliz devidamente aparamentados com botas, mantimentos, mochilas e smartphones sob o céu claro da manhã do último sábado – uma das vantagens de se viver no entorno da Serra é que se pode sair cedo de casa, passar o dia em meio à natureza selvagem e retornar, no final da tarde, são e salvo.

Diferente do percurso habitual, o acesso ao Pico do Cristal nos desperta a ansiedade dos principiantes. É porque a trilha que conduz à montanha, orientada apenas por totens de pedregulhos, percorre uma área pouco explorada do Parque, proporcionando uma vista absolutamente diferente do que se tem do pico principal. De lá, vemos o Bandeira pela face sul, ostentando em seu topo o cruzeiro e a torre de metal entre os turistas que, à distância, parecem minúsculas formigas sobre um torrão de pedra. Mais ao norte, desdobra-se a cordilheira dos picos adjacentes.

Mas conquistá-lo exige responsabilidade. É uma expedição aconselhável somente para os iniciados. Pois alcançar seu cume é tarefa que demanda, ao mesmo tempo, robustez do corpo e delicadeza dos movimentos. Por ser uma escalada de alta perícia, qualquer distração pode não admitir segunda chance.

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Por isso, vencer o Pico do Cristal foi como amansar a fúria de um gigante de rocha que reflete sua sombra pontiaguda a centenas de quilômetros na direção do horizonte.

Em seu topo, enquanto Canibal preparava o café na prensa italiana e Orlando fotografava a tarde matizada pelo sol poente, eu, observando a vastidão do mundo sob meus pés doloridos e imaginando quais forças misteriosas do planeta edificaram aquele arrojado conjunto de montanhas, refletia sobre nossa insignificância humana perante aquele santuário geológico de primeira grandeza, cuja beleza é tão brutal que nos causa um trauma de perpétuo deslumbre e encantamento.

Por Farley Rocha. / Fotos: Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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