Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Desde que estive lá pela primeira vez sou atraído pelo Pico da Bandeira. O que antes era apenas curiosidade, escalá-lo se tornou uma tradição que já dura quase duas décadas. É que as profundezas do Caparaó parecem possuir uma mística energia capaz de nos enfeitiçar como num ritual de renovação.
Esta estranha força que emana das cordilheiras nos faz enxergá-las não como um aglomerado monumental de rochas e precipícios, mas como uma verdadeira entidade que habita no meio de nós, influenciando nossa vida e nossos sentimentos. Tanto que ao aventurarmos por elas somos repelidos pelo cansaço físico, frio e bolhas nos pés. Mas também somos seduzidos e encorajados para superar seus obstáculos e desfrutar da recompensa de suas belezas.
Embora estas montanhas estejam sempre no mesmo lugar, o lugar onde elas estão nunca é o mesmo. A cada escalada temos a sensação de explorar um mundo diferente, com um novo clima, um novo céu, um novo sol. E não há fotografia que registre esta metamorfose da natureza se não a da câmera de nossa própria memória, pois as paisagens das quais temos o privilégio de participar são tão perturbadoras que ninguém que as conhece de perto consegue sair impune.
Mas a Serra do Caparaó, com a autoridade de seus dois milhões de anos de existência, possui uma imponência só comparável à dos deuses de civilizações remotas. Por isso, a nós que ousamos explorar suas entranhas, é necessário prestar-lhe as devidas reverências e respeitar os limites que ela nos impõe. Os antigos do Caparaó já sabiam disso e a cultuavam como fazem os devotos frente a uma catedral sagrada.
Cá de baixo, quando avistamos seus contornos formando castelos entre as nuvens, sentimo-nos como quem olha para um território desconhecido, envolto em mistérios e segredos ocultos. Como o caso do avião Cessna que colidiu com um de seus paredões há cinquenta anos, cuja fuselagem ainda permanece guardada em algum ponto de seus vales perdidos; ou a origem da Cruz do Negro, nome do pico onde um velho caçador foi encontrado sem vida, surpreendido pela geada enquanto tentava acender a fogueira; além do lendário esconderijo das armas enterradas na época do controverso episódio da Guerrilha do Caparaó.
Porém, o que mais nos desperta fascínio não são nem tanto o espetáculo do nascer do sol visto do seu topo nem a sublime perspectiva que temos da circunferência do mundo quando olhamos lá do alto, mas a possibilidade de se pisar em seu chão pré-histórico que mantém, ainda hoje, a mesma configuração que tinha desde as eras primordiais do planeta – certamente, era esta a percepção que tinham os índios que habitaram a região muitos séculos atrás.
Por isso, como que movido por esta obsessão ancestral, retornei mais uma vez aos labirintos de trilhas e desfiladeiros da Serra do Caparaó, mas agora para realizar um feito, para mim, inédito: conquistar o geométrico e desafiador Pico do Cristal.
Orlando, Canibal e eu, uma tríade de aventureiros de final de semana, partimos de Espera Feliz devidamente aparamentados com botas, mantimentos, mochilas e smartphones sob o céu claro da manhã do último sábado – uma das vantagens de se viver no entorno da Serra é que se pode sair cedo de casa, passar o dia em meio à natureza selvagem e retornar, no final da tarde, são e salvo.
Diferente do percurso habitual, o acesso ao Pico do Cristal nos desperta a ansiedade dos principiantes. É porque a trilha que conduz à montanha, orientada apenas por totens de pedregulhos, percorre uma área pouco explorada do Parque, proporcionando uma vista absolutamente diferente do que se tem do pico principal. De lá, vemos o Bandeira pela face sul, ostentando em seu topo o cruzeiro e a torre de metal entre os turistas que, à distância, parecem minúsculas formigas sobre um torrão de pedra. Mais ao norte, desdobra-se a cordilheira dos picos adjacentes.
Mas conquistá-lo exige responsabilidade. É uma expedição aconselhável somente para os iniciados. Pois alcançar seu cume é tarefa que demanda, ao mesmo tempo, robustez do corpo e delicadeza dos movimentos. Por ser uma escalada de alta perícia, qualquer distração pode não admitir segunda chance.
Por isso, vencer o Pico do Cristal foi como amansar a fúria de um gigante de rocha que reflete sua sombra pontiaguda a centenas de quilômetros na direção do horizonte.
Em seu topo, enquanto Canibal preparava o café na prensa italiana e Orlando fotografava a tarde matizada pelo sol poente, eu, observando a vastidão do mundo sob meus pés doloridos e imaginando quais forças misteriosas do planeta edificaram aquele arrojado conjunto de montanhas, refletia sobre nossa insignificância humana perante aquele santuário geológico de primeira grandeza, cuja beleza é tão brutal que nos causa um trauma de perpétuo deslumbre e encantamento.
Por Farley Rocha. / Fotos: Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com