Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Cão sem rumo

É que o cão de pelagem negra e avolumada, com patas esguias e calda bandeira rumou-se para onde nem em sonhos perdigueiros imaginou conhecer.

Publicado em 25/08/2023 - 16:58    |    Última atualização: 25/08/2023 - 16:58
 

* Ouça a narração da crônica clicando abaixo:

https://www.youtube.com/watch?v=sWo_v0BOo3k

Haveria o cão de se lembrar de voltar para casa, farejando o próprio rastro carimbado na poeira, nos zigue-zagues da estrada abaixo dos cafezais.

Haveria, sim, aquele cão de reconhecer o caminho de casa, depois que, distante muitas léguas a perder de vista, cruzou a serra só para espiar, com seus olhos de bicho matuto e curioso, o que havia do lado de lá, depois dos morros para além do terreiro, depois das matas que sombreavam as várzeas.

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“Saiu cedo e ainda não voltou”, é o que disseram quando deram por sua falta. “Foi visto lá na curva do coqueiro, depois da casa do Sr. Oliveira”, disse um outro ao ser perguntado.

Preocuparam-se com ele seus tutores, acostumados a ouvir seus latidos ao redor do curral, ao menor zunido de veículos roncando nas proximidades. Mas o angu fresco colocado em seu cocho pela manhã continuava intocado. Por todo o dia nem sinal do Veludo – como assim o chamavam.

É que o cão de pelagem negra e avolumada, com patas esguias e calda bandeira rumou-se para onde nem em sonhos perdigueiros imaginou conhecer. Amanheceu aquele dia como se sentisse saudades de qualquer coisa que não sabia, uma nostalgia de horizontes onde jamais havia mirado os olhos. Por isso caminhou, sem norte ou objetivo, ao sabor dos instintos, guiado apenas pela energia das pernas acostumadas a correr pastos, atravessar córregos, transpor milharais atrás de tatus, aves pernaltas e pequenos roedores.

Caminhou tanto que para seu entendimento de cachorro de roça as horas pareceram-lhe dias que quando deu por si, distraído com paisagens e pensamentos de aventura, esqueceu-se de qual lado tinha vindo, de qual direção ressoavam as vozes gritando pelo seu nome. Então, restou-lhe alargar o próprio mundo caminhando para frente, como se de algum modo soubesse que seguindo em linha reta retornaria, algum dia, ao ponto de partida tal qual supôs Colombo na tentativa de circundar o globo.

Passaram-se dias, semanas e meses. Habituou-se tanto à vida andarilha que reaprendeu, pela artimanha preservada dos ancestrais primitivos, a caçar alimento feito um animal selvagem. Dormia sob arbustos à beira da estrada, aquecendo-se do relento entre folhas e gravetos secos, e quando revigorado do cansaço peregrino, punha-se outra vez a caminhar sem rumo, manhãs e tardes inteiras de chuva e de sol, saciando a sede em poças e remansos. De tão distante e há tanto longe de casa, seu antigo lar se desfazia da lembrança como um desenho a lápis que aos poucos se apaga.

Um dia, quando dobrava um morro num final de tarde, parou um instante no topo de um barranco a contemplar o arrebol que tingia o horizonte. Um amontoado de nuvens matizadas de vermelho, uma brisa tardia de verões passados foram o suficiente para tocarem-lhe na alma um afago de outros tempos. Vieram-lhe de súbito o curral, os tatus e as vozes cotidianas num turbilhão de sentimentos que não pôde compreender. Pela primeira vez comoveu-se com a solidão.

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Foi quando lá embaixo, de uma casinha com chaminé e janelas azuis ouviu no emaranhado do vento uma canção de viola de qualquer rádio ligado. Não soube distinguir se a música ou o cheiro de janta que reboou-lhe na memória um sentido que há muito julgava ter se esquecido. Bem no fundo, algo lhe soava familiar. Então, no bico do terreiro um homem de chapéu e enxada às costas gritou bem alto: “Veludo! Veludo!”. E ele, protuberando o coração ao ritmo de um galope feliz, partiu ao encontro daquele que, de longe, imediatamente o reconhecera: era seu amo, seu dono, seu mestre.

Veludo, a custos de uma fuga sem motivos havia enfim encontrado o caminho de volta para casa.

Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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