Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
“Abstração” é a capacidade de analisar e compreender algo a partir dos valores e do conhecimento que detém o próprio observador. Um livro, um filme, um discurso são entendidos assim. Assimila-se algo não pelo o que ele é, mas pelo o que nele representa aquilo que há em nós.
Por isso cada ser tem uma ideia de mundo. Enquanto uns veem defeitos, outros enxergam virtudes. É como se buscássemos lá fora a imagem que julgamos ser de nossa semelhança. Isto explica, em parte, odiar mocinhos e amar violões, desprezar qualidades e tolerar imperfeições.
Na ficção ou na vida real, a forma que cada um tem de abstrair a vida é que define aquilo que realmente somos – nos identificando com o outro ou repelindo o que no outro nos destoa.
Neste processo, o que conecta os iguais é a sintonia entre pessoas que abstraem de maneira parecida. Os que defendem valores e princípios afins geralmente comungam dos mesmos livros, filmes, ideias e opiniões, como planetas orbitando uma só estrela.
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A rigor, por falta de consistência jurídica, o vídeo da reunião ministerial divulgado pelo Supremo talvez não atenda ao que serviu de pretexto: provar o crime o qual acusam o Presidente – embora suas falas deixem claras as intenções, não passam de meras evidências.
No entanto, a gravação constata o óbvio que muitos já sabemos: o interior oco de um governo baseado em contradições.
A começar pela pauta principal da reunião. Em plena crise da pandemia, “saúde pública” não passou de um assunto de raspão. Entre grunhidos gestuais e interjeições escatológicas, Bolsonaro se comportou como um técnico de vestiário preparando pernas-de-pau para o segundo tempo no campinho da várzea. Culpando juízes e desprezando torcidas, treinador e jogadores gritaram bolachas, pediram união, bradaram o punho e disseram “pra cima deles, porra!”. Só esqueceram do principal: combinar qual lado é a direção do gol – ou melhor, combinaram, é à esquerda; coronavírus? “Ah! depois tem que ver isso daí”.
Trataram de Economia como se emprego e gente não fossem uma coisa só, culparam a mídia por revelar problemas que eles próprios criaram, acusaram Governadores de violarem direitos por quererem resguardar justamente vidas e sugeriram leis que facilitem a prática de degradação ambiental, sempre argumentando que perseguições ocultas e inimigos imaginários planejam destronar o Rei da Boçalidade. Também discutiram Saúde, claro, numa sequência de frases soltas que não duraram dois pares de minutos.
Não bastando, Bolsonaro defendeu a tese de que armando o “cidadão de bem” estaria este protegido das “tiranias” municipais e estaduais no enfrentamento à pandemia. Ou seja, o lunático propõe abertamente uma guerra civil contra aqueles que se opõem ao regime de exceção a que ele se coloca no centro de comando.
Em toda a reunião, apenas num único ponto Bolsonaro acertou: estamos mesmo em estado de guerra. Mas o combate é contra um inimigo comum, o vírus, e não uns contra os outros.
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Há quem discorde da equipe de Governo, há quem discorde do Presidente chinelão. Mas uma coisa é nítida: concordar com ele e seu grupo ideológico é comungar da mesma abstração com que Bolsonaro compreende o mundo – um cristão sem Cristo, um honesto mentiroso, um sincero estúpido, um solidário egoísta, um democrático autoritário, um nacionalista entreguista, um pacificador violento, um esclarecido desinformado, um pensador negacionista, um crítico alienado, um conservador hipócrita, um herói covarde, um moralista mau-caráter e outras mil contradições que definem o Presidente.
Isto é, por ingenuidade, ignorância ou identificação, a sintonia do pensamento bolsonarista é a mesma da vítima que ama o vilão.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com