Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
A natureza, na confecção dos seres e do mundo, haveria de nos ter premiado com a faculdade mental das anotações rápidas. Exatamente como se rabisca num papel uma frase ou uma ideia para que nos lembremos mais tarde. Mas a memória já não cumpre a tarefa? De nos servir de gavetas para guardarmos o passado? De certo que sim. Entretanto, o artifício da memória talvez atenda apenas aos grandes acontecimentos, aqueles cuja relevância deve transpor o tempo e se solidificar numa recordação fossilizada – ou para aqueles nem tão grandes assim mas que nos marcam por serem de algum modo especiais. E quanto aos milhares de miúdos eventos que, por questões de correria ou mera distração, nos passam despercebidos por considerarmos de valor inferior? Os instantes que vivenciamos de relance, que de tão efêmeros parecem nem ter acontecido e no entanto constituem a maior parte do que vemos, ouvimos e experimentamos diariamente, merecem mesmo o ostracismo do esquecimento? Mais do que um gesto mecânico do olhar, há nesses pequenos momentos quase invisíveis a beleza dos pormenores da vida e, ainda que modestos, são o que justifica nossa existência uma vez que preenchem as lacunas do que escapa à memória. Caso contrário, que razão reside em testemunhar o feixe de luz solar na cortina projetando estrelas no chão da sala, o voo acrobático da andorinha por entre a fiação dos postes, o ramo que amanhece florido no cinza áspero dos muros? Se tivéssemos, portanto, a sorte de jamais esquecê-los, estariam todos ali, ao alcance de dois ou três pensamentos, para suavizar a brutalidade das horas que nos corrompem os dias e contaminam as lembranças. À nossa intrincada estrutura cerebral a natureza, lá nos primórdios de todas as coisas, poderia ter reservado um sistema de anotação rápida, útil e eterna. Um mecanismo simples, mas tão revolucionário quanto a invenção da caneta e um pedaço de papel.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com