Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
A memória é um labirinto de corredores invisíveis, uma imensa cidade onde as ruas não se cruzam. Porque às vezes, por maior que seja o esforço, por mais obstinada que seja a procura não conseguimos achar a saída – ou talvez a própria entrada – que nos leve ao encontro da lembrança desejada. Outra hora, quando menos esperamos o acaso nos surpreende e o esquecido nos vem à tona, assim, de súbito e cristalino como um raio sem prenúncio.
Um cheiro, uma textura, um som insuspeitado são gatilhos que disparam qualquer lembrança adormecida. E algumas são tão vívidas que chegam a provocar a mesma sensação que tivemos antes, como se o fato relembrado, por mais remoto, acabasse de acontecer.
Foi isso que experimentei recentemente quando, num almoço de quarta-feira, absorto pelo gesto mecânico de mastigar, levei à boca uma azeitona. A misteriosa troca química entre o paladar e as sinapses do meu cérebro me transportou da cozinha da minha casa a um instante exato suspenso no meu passado. Por razões completamente desconhecidas, aquela minúscula azeitona tinha o mesmo gosto da azeitona que comi às onze e vinte da manhã do dia 25 de dezembro de 1991.
Na época, minha avó materna reunia a família para o almoço de Natal. Era o raro dia do ano em que todos ficávamos juntos. Seus filhos, noras, genros, netos e toda a confusão de risos e palavrões desses encontros natalinos estavam ali, ao redor da mesa com travessas, refratários, panelas e o vapor do fogão a lenha defumando a atmosfera.
Guardo a data porque eu tinha então nove anos de idade. E sei do horário porque me lembro que um dos tios, impaciente pela urgência do estômago, conferiu o relógio: “São onze e vinte, já podemos comer”.
Olhando assim, cá de fora, a memória até parece um palheiro: basta uma centelha de pensamento, um detalhe prosaico como o gosto de uma azeitona para que um fogaréu de lembranças se alastre na imaginação iluminando por inteiro um universo que o tempo apagou.
Naquele almoço servi meu prato com feijão vermelho, macarronada com ovos cozidos, uma coxa de frango frito e uma porção de salada de maionese. Por um hábito infantil, e para provar separadamente os ingredientes da salada, brinquei de selecionar por cores cada item que a compunha: ervilhas, pimentões, cubos de batata, cenouras cozidas e, claro, as azeitonas picadas – sem às quais, efêmeras no cantinho do prato, não resgataria pelo arquivo das papilas o sabor aconchegante do tempero da minha avó.
Vó Natair morava numa espécie de chácara no Bairro do Roque, onde um curso d’água vindo da serra corria nos fundos da casa entre cafezais e bananeiras. Nesse dia, após o almoço meus primos e eu fomos brincar no terreiro, ao lado do paiol de ferramentas do meu avô. Depois, longe da censura dos adultos em seus afazeres e assuntos domésticos, atiramos pedra nas lagartixas do telhado, corremos descalços pela horta atrás da varanda, invadimos o galinheiro para assustar as galinhas e, mais tarde, sob o sol rachando de dezembro fomos todos para o córrego lá embaixo, sinuoso à sombra do matagal, para nadar em seus remansos turvos e pescar barrigudinho na peneira.
Embora tenha um quê de divino transpor essas pontes sobre o abismo do tempo, não deixa de ser estranho olhar para o passado com os olhos do agora. As pessoas de trinta anos atrás parecem outras. É como rever um filme antigo cujos atores esqueceram de envelhecer – enquanto outros, pela natureza inevitável da vida, simplesmente deixaram de existir. No entanto, apesar da distância e do esquecimento algo de familiar permanece intacto: o timbre de suas vozes, a fisionomia de seus rostos, o movimento de seus gestos, e a constatação de que muito de nós, o que somos hoje, é resultado de nossa convivência com cada um deles.
Não me lembro de ter havido nesse dia troca de presentes nem amigo-oculto. Afinal, formávamos uma família de poucas posses e presentear uns aos outros era um luxo que não nos cabia no bolso. Mas pouco importávamos. Porque para uma criança de 1991, uma tarde na roça com primos, tios e avós reunidos não havia presente que substituísse – como hoje não há memória que substitua os que já se foram.
Como quem folheia um álbum de retratos sem reconhecer direito as imagens que vê, durante muitos anos esse dia me veio à mente apenas como um flash difuso na escuridão. Mas quando senti no paladar o mesmo sabor da azeitona daquele almoço foi como ter de volta, numa fração de segundo, todas as sensações que nenhum futuro poderia projetar.
Enquanto mastigava a azeitona não houve saudade ou suspiro de nostalgia. Apenas percebi que certos sabores do passado são o que temperam a vida que degustamos no presente.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com