Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
As Aventuras de Pi é um filme lançado em 2012 pelo asiático Ang Lee, também diretor dos excelentes O Segredo de Brokeback Mountain (2005) e Aconteceu em Woodstock (2009).
Adaptação para o cinema do livro Life of Pi, do escritor canadense Yann Martel, o enredo nada previsível narra a história de um jovem indiano que se muda para o Canadá num cargueiro junto dos animais do zoológico de sua família. Em determinado ponto da trama, uma terrível tormenta provoca o naufrágio do navio, levando à morte todos os que estão a bordo – exceto Pi, o protagonista, que se refugia num barco salva-vidas boiando entre os destroços.
Desolado, Pi se vê em apuros não só por estar a deriva no meio do Pacífico mas porque sua frágil embarcação também abriga o único animal que sobreviveu à tragédia: um enorme e feroz tigre-de-bengala cujo nome peculiar é Richard Parker.
Sem comida, equipamentos ou qualquer outro recurso, além de ter que enfrentar os perigos do mar bravio o rapaz luta para não ser devorado pela fera selvagem com quem divide o pequeno barco.
Como o título sugere, o longa é uma emocionante metáfora repleta de aventura, esperança, espiritualidade e superação, que nos faz refletir sobre o grande oceano que é a vida e a forma como devemos domar as feras que sempre nos ameaçam.
No entanto, mais curioso do que a genialidade do enredo é a inspiração que deu origem à narrativa. Embora seja um sucesso de Hollywood, com nada menos que 11 indicações ao Oscar, o livro que serviu de base para o roteiro foi alvo de uma controversa polêmica. Yann Martel, o autor best-seller da trama, copiou na cara dura a ideia de Max e os Felinos, obra publicada em 1981 por um dos mais consagrados escritores brasileiros, o gaúcho Moacyr Scliar, falecido em 2011.
Ao saber do fato, o discreto Scliar não quis cobrar judicialmente seus direitos, contudo esperava uma retratação pública por parte do canadense. Pouco depois, questionado sobre o assunto em entrevista, o autor de Life of Pi disse não ter plagiado, mas apenas “aproveitado uma boa ideia estragada por um escritor ruim”. Scliar, que em sua carreira nunca foi de desavenças literárias, resolveu deixar o caso para lá, apesar da declaração deselegante do usurpador.
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Há algumas semanas, ao sair para o trabalho pela manhã encontrei um siamês filhote na garagem de casa. Pelo tamanho, a veterinária nos disse que não tinha mais do que dois meses de idade. Com um miado quase imperceptível, estava fraco e desorientado como se sua curta existência já não lhe garantisse maiores expectativas.
Então, o trouxemos para casa, o alimentamos e imediatamente tentamos descobrir quem eram seus tutores. Postamos nas redes sociais, perguntamos na vizinhança, mas como não obtivemos retorno, julgamos tratar-se de uma ninhada desgarrada ou mesmo de um ato cruel de abandono. Decidimos, portanto, adotá-lo.
Em poucos dias o pequenino aumentou de peso, sua pelagem minguada ganhou ares de bicho de pelúcia e o medo trêmulo no profundo azul de seus olhos converteu-se em calmaria roçando-se em nossas pernas. Afinal estava seguro abaixo de um teto, protegido da violência das ruas, aconchegado pelo carinho que o mundo, até então, o privara.
Agora, vendo-o saudável brincando no terraço, correndo atrás de guizos e camundongos de mentirinha, fico pensando em Pi e nos horrores de seu naufrágio. Embora o tigre-de-bengala fosse uma constante ameaça, havia entre os dois personagens um pacto incondicional: à mercê das correntes marítimas, ambos estavam literalmente no mesmo barco. Por isso, para não sucumbirem à solidão do oceano ou ao desespero das tempestades de alto-mar, o jovem não o empurrava para as águas nem o animal o atacava enquanto dormia. Eram cúmplices, apesar das diferenças; eram parceiros, apesar do trágico destino.
Semelhante à ficção do filme, adotar o gatinho que apareceu na minha garagem foi como salvá-lo do naufrágio que a vida lhe condenou. E de sua parte, posso sentir que seu ronronar tranquilo e seus toques de afeto são gestos de gratidão a quem o acolheu como a um companheiro de jornada. De alguma forma ele entende que neste mundo também estamos no mesmo barco.
E desta relação de amizade e confiança não tive dúvidas para escolher seu nome. Poderia ter sido “Pi”, por causa do rapaz indiano; ou “Richard Parker”, por causa do tigre. Mas decidi chamá-lo de “Max”, em homenagem a Moacyr Scliar, o verdadeiro autor de uma comovente e bem escrita história chamada Max e os Felinos.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com