Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Apenas um rapaz latino-americano ou um pequeno mapa do tempo para leigos em Belchior

"Alô, presente, estou chegando, Alô futuro, já vou!..." (da música Arte Final)

Publicado em 05/05/2017 - 15:16    |    Última atualização: 05/05/2017 - 15:16
 

Eu tinha dezoito anos quando um amigo me emprestou um CD duplo intitulado “Autorretrato”, que reunia os maiores sucessos de um cantor com sotaque nordestino e voz estranhosa, cujo bigode sinuoso conferia ao seu rosto uma versão quase caricata de si mesmo. Belchior era seu nome, uma espécie de trovador andante desvirtuado dos outros dois Reis Magos.

Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes – “o maior nome da MPB”, como o mesmo costumava brincar – é natural de Sobral, interior do Ceará, e vem de uma grande família de 23 irmãos. Embora de berço humilde, nasceu ladeado de cultura, com vários tios e primos músicos, poetas e boêmios – influência que o fez largar o curso de medicina no quarto ano de faculdade e descer ainda jovem para o sudeste rumo ao sonho de se tornar artista.

Além de outros importantes feitos para a cultura nacional, Belchior foi um dos primeiros de sua terra a ser percebido e quem abriu as porteiras do sertão para que a emblemática música nordestina alcançasse o eixo Rio-São Paulo, fazendo com que a indústria e o grande público descobrissem o alfabeto de nomes que vão do “a” de Alceu Valença à “z” de Zé Ramalho.

Estabelecendo-se na capital paulistana, gravou a priori “A Palo Seco”, em 1973, e “Mote e Glosa”, em 1974, ambos com modesta visibilidade e sem grandes repercussões. Se um sujeito de nariz avantajado e cara larga, com voz nasalada que cantava músicas com letras fortes e de poética tão filosófica já causava estranhamento à indústria fonográfica dos anos setenta, imagina-se ao público…

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Mas em 1976 veio sua consagração definitiva ao compor “Alucinação”, seu mais ontológico disco, onde gravou as canções que, de tão expressivas e penetrantes, perduram até hoje como sua grande marca. É desse álbum “Apenas um rapaz latino-americano”, “Como nossos pais”, “Velha roupa colorida”, “Fotografia 3×4”… À época, apoiado por calibres já consagrados da MPB, como sua mais genial intérprete Elis Regina, que regravou e imprimiu notoriedade às suas composições, Belchior atingiu o estrelato e revelou seu talento rico em originalidades, cravando seu nome no imaginário sonoro do Brasil e, quiçá, da América Latina.

Atualmente considerado o porta-voz da sua geração, que cantou os dramas de uma juventude forçada a largar as utopias e os sonhos dos anos sessenta e encarar a vida do jeito que a maturidade nos traz, Belchior transmutou-se em personagem chave de uma contracultura onde outros também fulguravam célebres, como Raul Seixas e Sérgio Sampaio. Com discurso visceral e poesia reflexiva, falava sobre amor, dilemas, saudades e frustrações de forma comovente e bela, em letras cheias de referências ao citar Beatles, Fernando Pessoa e o nordeste de onde veio. Assim, tornou-se um ícone pop não só do seu tempo, mas também de gerações futuras, chegando a ocupar no Brasil de hoje status equivalente ao de Bob Dylan nos Estados Unidos.

Em quatro décadas de carreira, o solitário Rei Mago do agreste gravou mais de 20 discos, provando ser um artista com criatividade em constante ebulição. “Coração Selvagem”, “Objeto Direto” e “Divina Comédia Humana” são outros importantes títulos que dão força ao conjunto de sua obra e o conferem o selo de um dos principais artistas brasileiros.

Mas como por ironia de suas próprias reflexões, Belchior compôs sua história de tal modo que entrelaçou vida e obra numa trama de difícil dissolução, e, de certa maneira, passou a vivenciar o que era fruto apenas de suas canções mais sombrias. Por motivos desconhecidos, em 2007 sua narrativa pessoal tomou rumos imprecisos. Depois de largar esposa e filhos, desapareceu junto à amante abandonando casa, compromissos, amigos e a própria carreira – atitude que o fez contrair e acumular dívidas astronômicas em pensões, aluguéis, processos judiciais e estacionamentos de São Paulo. Durante os últimos dez anos, raramente foi visto entre Uruguai e Brasil, perambulando por ruas e esquinas de Porto Alegre, esquivando-se de jornalistas e fãs em saguões de hotéis baratos como um clandestino tentando manter-se oculto.

Porém, o anonimato era um luxo do qual sua grandeza artística jamais o permitiria gozar e logo que a mídia e o público deram por sua falta, um arsenal de holofotes voltou-se sobre ele colocando-o novamente em evidência, com uma avalanche de artigos e tópicos na internet e nas redes sociais questionando os motivos de sua misteriosa desaparição.

Infelizmente, Belchior nos deixou na manhã do último domingo aos 70 anos de idade levando consigo tais respostas. Talvez seja porque seus devaneios da mocidade nunca tenham se apagado com o passar dos anos. Ou as angústias de suas letras mais carregadas o tenham consumido interiormente. Mas, conjecturas à parte – já que ele não se “interessava por nenhuma teoria” – o eterno rapaz latino-americano foi fiel à sua obra quando anunciava na canção antiga que “não tinha dinheiro no banco, nem parentes importantes e que vinha do interior”.

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Por isso, não é justo considerar que os últimos dias de Belchior foram entregues à própria decadência. Mas, pelo contrário, comprovaram a lucidez e a atitude que transformaram o último capítulo de sua vida em uma digna e imperecível “arte final”.

Vá com Deus, querido Bel! E que os santos e anjos nos permitam, de vez em quando, avistar cá de baixo o seu característico bigode nos desenhos que as nuvens formam lá no céu.

* * *

p.s. Como fã e admirador da música, da poesia, da obra e da vida de Belchior, abro meu coração de poeta da roça e revelo, em ordem de preferência, a setlist das minhas dez mais deste artista que me encanta desde a adolescência (para ouvir, clique sobre cada título abaixo):

1- Galos, noites e quintais

2- Comentário a respeito de John

3- Tudo outra vez

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4- Velha roupa colorida

5- A palo seco

6- Ipê

7- Apenas um rapaz latino-americano

8- Como nossos pais

9- Medo de avião

10- Pequeno mapa do tempo

Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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