Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Sábado, 9h da noite. Capricornianos celebram aniversários num prédio da Área de Lazer, famílias assistem novelas no Bairro João do Roque, jovens bebem cerveja nos bares do centro e pedestres transitam sob marquises da José Grillo. Seriam cenas triviais não fosse o fato de que todos, neste momento, se mantêm alerta numa vigília que atravessará a madrugada.
É que nas últimas vinte e quatro horas chove pesado na região e, com o trauma de duas grandes enchentes em menos de dois anos, a preocupação tornou-se uma companhia indesejada que se faz presente quando chega janeiro.
Por isso, entre uma música e outra dos que comemoram no apartamento, entre um gole e outro dos que bebem nos bares, entre um intervalo e outro dos que assistem TV e entre um passo e outro dos que caminham na rua, todos checam suas redes sociais para acompanhar de longe o nível do São João.
De hora em hora a Defesa Civil emite boletins oficiais, o Portal Espera Feliz publica imagens em tempo real da cheia, e aplicativos de mensagem superlotam smartphones com notícias de parentes e amigos que residem nas áreas de risco.
Mesmo com a situação sob controle, com autoridades monitorando o rio e as previsões meteorológicas, paira no ar um clima de apreensão como se as nuvens sobre a cidade fossem presságios de mau agouro. E é com razão: há dois verões que parte da zona urbana se submerge em lama e destruição, instalando o caos até aonde a violência das águas alcança.
Apesar das recentes obras da prefeitura para conter a inundação, uma espécie de sinal vermelho coletivo perturba o sono de Espera Feliz – nesta noite, os que conseguirão dormir terão sonhos vertiginosos com dilúvio e ruínas.
Não só os que moram próximos ao rio mas também os que estão a cem, duzentos metros das margens, começam a suspender os móveis ou empreender mudanças de urgência antes que o mal maior se repita. E sob a chuva, na iminência de uma madrugada incerta, cidadãos se movimentam, aflitos, atenuando o temor com amparo e solidariedade.
As luzes da Major Pereira, dos bairros João Clara e Santa Cecília, da Rua Nova e da Beira Rio permanecerão acesas até bem depois da meia-noite – muitas delas só se apagarão quando a manhã de domingo chegar.
Viaturas percorrerão de ponta a ponta a cidade. Secretários municipais em capas-de-chuva discutirão planos em caso de calamidade. E as memórias ainda não cicatrizadas de 2020 e 2021 serão fantasmas a assombrar a paz de todos, sem exceção.
As horas avançam. O temporal aos poucos arrefece. E entre preces, telefonemas e conversas de portão o rio não transborda. Mas a vigília continua, atenta, como se a enchente fosse um bicho traiçoeiro que desfere o bote quando menos se espera.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com