Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
O que primeiro reverberou a destruidora força do impacto foi o para-brisa, estilhaçando-se em minúsculas e afiadas partículas como se uma constelação de vidro desabasse sobre o asfalto às cinco da tarde. Microscópicos milésimos de segundos depois, a colisão com a rocha ao lado da pista transfigurou o para-choque dianteiro do Corcel em um indecifrável objeto retorcido de metal cromado. Em seguida, a lataria branca e recém-polida contraiu-se com a violência que têm os terremotos despedaçando o chão, fazendo ranger os para-lamas e o capô como se fossem fundidos em lâminas de papel alumínio. No mesmo instante em que a carcaça do automóvel se reduzia à forma de que resultam as catástrofes, o mecanismo do motor interrompeu brutalmente sua combustão de ferro ao encontrar a solidez impenetrável da rocha. Nisso, seu sistema de engrenagens, parafusos, válvulas e hélices partiu-se ao meio como castelos de areia em tempestades de vento. Por fim, a energia de proporções atômicas liberada pelo impacto estridente do veículo estourou em cacos os faróis, as setas e as janelas laterais ao percorrer implacável por toda a extensão do carro. O motorista, atingido em cheio no tórax pela rigidez bélica do volante, pereceu ali mesmo entre o estofamento respingado de vermelho e o painel dilacerado numa profusão de fios e ponteiros, sem ter tido sequer a chance de avaliar a causa e o desespero de seus próprios danos: se foram os freios que falharam repentinamente enquanto fazia a curva ou se a fatídica hora é que havia de fato chegado. Não fosse a sogra ter decidido ficar para cuidar da janta, não fosse a esposa ter decidido ficar para ver a novela, não fosse a filha ter decidido ficar para dar banho nas bonecas, não fosse o cachorro ter decidido ficar para enterrar o osso a natureza da tragédia teria sido ainda mais devastadora, abreviando num efêmero momento a história particular de uma família inteira.
E desse ínfimo instante em que um homem anônimo, há 40 anos, sucumbira ao mortal acidente na BR-482, restou cravada na pedra da curva da Barragem uma cruz de ferro* carcomida pela ferrugem do tempo e a solidão do lodo, nos lembrando que a vida é mesmo um sopro, um estalo de relâmpago que, na mesma hora em que se ilumina de beleza, desaparece.
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* A cruz de ferro foi substituída por outra de concreto, instalada no mesmo local onde ocorreu o acidente.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com