Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Nas últimas semanas Espera Feliz vem sendo acometida por diversas queimadas cujos efeitos danosos são bem mais do que o manto de fumaça intumescendo o céu da tarde e a chuva de fuligem nas varandas e terraços.
Para falar do óbvio, há nesses incêndios de origem misteriosa uma perda irreparável. Como a área urbana é cercada por corredores de floresta nativa, animais de toda espécie, já desde muito confinados pelo avanço das lavouras de café, vão cada vez mais perdendo território, vitimados pela degradação disfarçada de progresso.
Mas além de pequenos mamíferos, roedores, aves, répteis e insetos, também uma vasta variedade de plantas é dizimada, convertendo-se a cinzas em questão de minutos. É como se civilizações inteiras dos reinos animal e vegetal fossem reduzidas a pó, incineradas por labaredas de quatro metros de altura provocadas por um simples fósforo em mãos incendiárias.
Contrariando as leis ambientais e o discurso sustentável tão urgentes para reconfigurar o planeta, essas queimadas tornaram-se apocalipses corriqueiros por aqui. Numa estatística para lá de alarmante, nos últimos trinta anos pelo menos vinte grandes focos de incêndio arrasaram com a vegetação das serras que circundam a cidade – e com elas séculos de manutenção da vida silvestre.
Um dos mais devastadores ocorreu na Torre, há cerca de quinze anos. Durante vários dias, as chamas eram vistas como línguas incandescentes lambendo a paisagem de canto a canto, derrubando árvores antigas, chamuscando cipós debruçados nos paredões de pedra, transformando o verde marinho na cor insípida dos desertos inóspitos. Cá de baixo, a montanha era uma imensa fornalha iluminando a noite.
Outro ponto constantemente sacrificado é o Morro do Mirante, nas proximidades do bairro João do Roque, onde o solo há muitas décadas judiado pelas chamas já não permite germinar mais do que saivás e miúdos arbustos. Vez ou outra, toda a encosta é tomada pelo fogo se alastrando em linhas diagonais de baixo acima pela força do vento, e o que sobra da colina é um panorama de carvão e rochas a mostras que faz lembrar de relance um crânio escalpelado.
Também não escapou ileso o Morro do Bicudo, que faz parte da Área de Preservação Ambiental da Vargem Alegre. Atingida muitas vezes por fogaréus incontroláveis, a montanha de 1.200 metros de altitude com silhueta de pirâmide já perdeu boa parte de sua diversidade. No passado, chegou a abrigar uma densa floresta de Mata Atlântica composta por palmeiras, paus-brasil, quaresmeiras, ipês, jacarandás, imbaúbas, além de um emaranhado colorido de bromélias, orquídeas, begônias, samambaias e musgos. Caminhar por ali era como adentrar um jardim selvagem suspenso pela copa das árvores. Mas hoje, clareiras de capim gordura e tocos carbonizados são sinais de uma regeneração cada vez mais lenta.
Atrelado a isso, há um prejuízo ainda mais nocivo: a escassez hídrica. São dezenas de nascentes que vão se tornando áridas a cada queimada, causando males irreversíveis ao equilíbrio da vida nativa.
Como se não bastasse, agora o alvo foi outra vez a Torre. Em pleno meio-dia de uma terça-feira, o que começou com um pavio de fumaça despontando por entre as árvores, dentro de poucas horas fez da montanha uma monstruosa chaminé industrial. Revoadas bateram em retirada, toras fumegantes rolaram penhasco abaixo e tudo quanto era mato foi tragado pela combustão.
Não foi possível mensurar a tragédia, mas na agonia das chamas milhares de seres invisíveis da floresta perderam ninhos e tocas, enquanto outros, sufocados pelo gás carbônico das folhas secas foram calcinados antes mesmo que pudessem correr, voar ou rastejar para bem longe. Ao entardecer, trilhas luminescentes faiscavam na encosta como rios de lava que atravessariam a madrugada.
Diante do caos, se o período de estiagem amplifica os danos dos incêndios florestais, cabe a nós, cidadãos conscientes, zelarmos pela preservação das serras que fortificam a cidade – resgatando a lição ancestral de que dos quatro elementos da natureza, é o fogo deliberado o que pode devastar a terra, o ar e a água.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com