Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

A beleza que subsiste no abandono

O lugar não passa de um espaço vazio como um vácuo permanente no centro da cidade onde o mato que abriga ratos, lagartixas e outras faunas peçonhentas também serve de despejo para lixo e dejetos.

Publicado em 15/09/2022 - 15:09    |    Última atualização: 15/09/2022 - 15:10
 

Acordo cedo em uma quinta-feira de trabalho e, antes de a caneca perfumar a casa de café, noticiam-me a guerra que estourou num país distante. Pela TV, repórteres esmiuçam para leigos a trama complexa de duas nações em um conflito bélico. Estarrecido, passo o dia acompanhando o confronto que desequilibrou meio mundo na corda bamba da paz, e me faço a mesma pergunta de outros tantos: por quê?

É quando vejo nas redes um vídeo desconcertante. Em meio a comboios militares dominando estradas, tanques blindados demolindo praças e tiroteios de fuzis alvejando vidraças, uma senhorinha eslava de gorro e pantufas se arrisca na calçada ao alimentar cães empoeirados. Acima dela, caças atravessam o céu disparando mísseis sobre a cidade cinzenta.

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O verão de 2022 segue de sol aberto e praia cheia até que um fato bárbaro nubla o céu de nossos ânimos: um jovem de 24 anos, negro e pobre é espancado até a morte num quiosque na Barra da Tijuca. Moïse Kabagambe era o seu nome, um imigrante congolês que, por uma diária não recebida, foi brutalmente assassinado a paus e pontapés. O caso repercutiu capas e editoriais, mas a comoção pelo africano durou não mais do que o tempo de outra violência sobrepujar sua memória.

Num momento em que o culto às armas e a lei do ódio prevalecem, busco nas entrelinhas bestiais dessa matéria algum sentido que reafirme nossa esperança. Descubro que “Moïse” é a variação francesa do hebraico “Moisés”, cuja etimologia é “o salvador”. Ironicamente Moïse Kabagambe – imigrante, negro e pobre – não teve a chance de salvar a si próprio. Mas seu destino trágico, que escancarou a todos a que ponto chegamos, talvez reflita a urgência de nos salvar de nós mesmos.

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Enquanto nas cidades a pandemia avançava, no mundo selvagem uma queimada devastava o Pantanal. Em 2020, quase um quarto da maior área alagadiça do planeta foi consumida pelas chamas, deixando um rastro de cinzas e esqueletos carbonizados de animais silvestres. Impotentes, acompanhávamos atônitos o desastre ambiental enquanto autoridades de governo, motivadas por interesses econômicos e ideológicos, viravam as costas.

Mas entre tantos vídeos sufocantes de labaredas e fumaça uma imagem em específico aliviaria nosso fôlego: uma onça pintada com queimaduras nas patas refugiada num galinheiro no interior de Mato Grosso. Resgatada para um santuário, hoje, dois anos depois, descubro que ela acaba de dar luz a um filhote perfeitamente saudável.

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Todos os dias passo por um terreno baldio próximo à minha casa. É um imenso quadrilátero que comportaria muito bem um prédio inteiro ou mesmo uma praça pública com playgrounds e chafarizes. Entretanto, o lugar não passa de um espaço vazio como um vácuo permanente no centro da cidade onde o mato que abriga ratos, lagartixas e outras faunas peçonhentas também serve de despejo para lixo e dejetos. “Poderia ser melhor aproveitado”, é o que sempre vem à cabeça de quem transita por ali.

Até que outro dia, ao beirar a calçada a caminho do trabalho notei algo diferente. O terreno amanheceu repleto de florzinhas roxas como se o orvalho da noite salpicasse o chão com estrelas. Eram centenas de ipomeias atapetadas na ramagem que o acúmulo de entulho, sacos plásticos e garrafas camuflou-se por completo entre as pétalas no capim. A natureza, por si só, fez do local um improvável jardim.

Vislumbrar a cena logo pela manhã teve algo de revelador. Foi como presenciar a força telúrica do acaso capaz de extrair do caos alguma reflexão possível – como descobrir a beleza que subsiste no abandono de uma guerra, de um linchamento hostil, de um incêndio florestal ou das flores que brotam onde menos se espera.

Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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