Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Acordo cedo em uma quinta-feira de trabalho e, antes de a caneca perfumar a casa de café, noticiam-me a guerra que estourou num país distante. Pela TV, repórteres esmiuçam para leigos a trama complexa de duas nações em um conflito bélico. Estarrecido, passo o dia acompanhando o confronto que desequilibrou meio mundo na corda bamba da paz, e me faço a mesma pergunta de outros tantos: por quê?
É quando vejo nas redes um vídeo desconcertante. Em meio a comboios militares dominando estradas, tanques blindados demolindo praças e tiroteios de fuzis alvejando vidraças, uma senhorinha eslava de gorro e pantufas se arrisca na calçada ao alimentar cães empoeirados. Acima dela, caças atravessam o céu disparando mísseis sobre a cidade cinzenta.
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O verão de 2022 segue de sol aberto e praia cheia até que um fato bárbaro nubla o céu de nossos ânimos: um jovem de 24 anos, negro e pobre é espancado até a morte num quiosque na Barra da Tijuca. Moïse Kabagambe era o seu nome, um imigrante congolês que, por uma diária não recebida, foi brutalmente assassinado a paus e pontapés. O caso repercutiu capas e editoriais, mas a comoção pelo africano durou não mais do que o tempo de outra violência sobrepujar sua memória.
Num momento em que o culto às armas e a lei do ódio prevalecem, busco nas entrelinhas bestiais dessa matéria algum sentido que reafirme nossa esperança. Descubro que “Moïse” é a variação francesa do hebraico “Moisés”, cuja etimologia é “o salvador”. Ironicamente Moïse Kabagambe – imigrante, negro e pobre – não teve a chance de salvar a si próprio. Mas seu destino trágico, que escancarou a todos a que ponto chegamos, talvez reflita a urgência de nos salvar de nós mesmos.
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Enquanto nas cidades a pandemia avançava, no mundo selvagem uma queimada devastava o Pantanal. Em 2020, quase um quarto da maior área alagadiça do planeta foi consumida pelas chamas, deixando um rastro de cinzas e esqueletos carbonizados de animais silvestres. Impotentes, acompanhávamos atônitos o desastre ambiental enquanto autoridades de governo, motivadas por interesses econômicos e ideológicos, viravam as costas.
Mas entre tantos vídeos sufocantes de labaredas e fumaça uma imagem em específico aliviaria nosso fôlego: uma onça pintada com queimaduras nas patas refugiada num galinheiro no interior de Mato Grosso. Resgatada para um santuário, hoje, dois anos depois, descubro que ela acaba de dar luz a um filhote perfeitamente saudável.
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Todos os dias passo por um terreno baldio próximo à minha casa. É um imenso quadrilátero que comportaria muito bem um prédio inteiro ou mesmo uma praça pública com playgrounds e chafarizes. Entretanto, o lugar não passa de um espaço vazio como um vácuo permanente no centro da cidade onde o mato que abriga ratos, lagartixas e outras faunas peçonhentas também serve de despejo para lixo e dejetos. “Poderia ser melhor aproveitado”, é o que sempre vem à cabeça de quem transita por ali.
Até que outro dia, ao beirar a calçada a caminho do trabalho notei algo diferente. O terreno amanheceu repleto de florzinhas roxas como se o orvalho da noite salpicasse o chão com estrelas. Eram centenas de ipomeias atapetadas na ramagem que o acúmulo de entulho, sacos plásticos e garrafas camuflou-se por completo entre as pétalas no capim. A natureza, por si só, fez do local um improvável jardim.
Vislumbrar a cena logo pela manhã teve algo de revelador. Foi como presenciar a força telúrica do acaso capaz de extrair do caos alguma reflexão possível – como descobrir a beleza que subsiste no abandono de uma guerra, de um linchamento hostil, de um incêndio florestal ou das flores que brotam onde menos se espera.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com