CAPÍTULO XIV
OS IMPACTOS EMOCIONAIS E PSICOLÓGICOS
Clique aqui para ouvir pelo Spotify.
Clique aqui para ouvir pelo YouTube.
Clique aqui para ver os capítulos anteriores.
A história mostra que das experiências extremas pelas quais a humanidade já passou é natural que haja efeitos permanentes na memória de quem as vivenciou. Assim acontece com as guerras, com grandes naufrágios, com terremotos e furacões. Inevitavelmente, a grande enchente de 2020 ficará como um tipo de cicatriz nas lembranças mais profundas do povo de Espera Feliz.
Afinal, embora não tenha vitimado fatalmente ninguém, milhares de pessoas ao mesmo tempo tiveram, da noite para o dia, a rota de suas próprias vidas alterada. Quem anoiteceu naquela sexta-feira 24 de janeiro sobre uma cama quente e com roupas limpas, acordou sem um único objeto que pudesse chamar de seu. Não apenas as perdas materiais como também o ânimo que precisou ser fabricado num momento de tanta fragilidade, fez com que muitas pessoas, das mais prejudicadas às que passaram incólumes do perigo, se deparassem com uma realidade absolutamente difícil de ser vivida.
Neste sentido, ter sido ou não atingido pela enchente não fez diferença. Porque diante de tantos estragos e de tantas famílias desconsoladas, para quem presenciou de perto aquelas angustiantes semanas, era como se a cidade inteira tivesse desvanecido sob as águas – e junto com ela uma parte do sorriso esperafelicense. Pois a cidade e a vida que todos conheciam haviam sido desfiguradas no decorrer de uma única madrugada. Apesar disso, era possível recolocar tudo em ordem novamente. Mas, primeiro, era preciso reorganizar as próprias emoções e pensamentos.
Segundo a psicóloga da prefeitura Drª Rosiane Souza Martins, que desde às 23 horas de 24 de janeiro atuou junto aos desabrigados no Seminário, é comum em eventos catastróficos como este a ocorrência de um trauma coletivo. Nesses casos, em que muitos perdem casas ou pertences, enquanto outros se veem muito próximos do perigo, há um grande abalo emocional capaz de desencadear uma série de outros problemas nas vítimas. Assim, como forma de reaprender a conviver com uma nova realidade, é necessário lidar com a situação como numa espécie de luto simbólico, para superar e seguir em frente.
Por isso, foram instalados consultórios improvisados nos abrigos, compostos por um corpo de diversos psicólogos e terapeutas voluntários, para amparar e acompanhar as famílias refugiadas após a grande enchente. Drª Rosiane conta que os primeiros dias foram os mais difíceis. A quantidade de desabrigados era enorme e a demanda por atendimento era generalizado. Eram adultos, crianças, gestantes e muitas outras pessoas que se encontravam, quase todas, sob a mesma condição.
Como a Secretaria Municipal de Saúde possui uma cobertura de 100% dos munícipes cadastrados, foi feito primeiro um levantamento de todos os pacientes que já eram acompanhados pelos serviços do Centro de Atenção Psicossocial, o CAPS, para que continuassem os tratamentos em andamento. Em paralelo, foram organizados grupos de apoio psicológico para que os desabrigados pudessem absorver os traumas e reconstituírem a autoestima
Além disso, como os próprios profissionais da linha de frente estavam tendo que lidar diariamente com inesperadas adversidades e pressões em face dos agravos que a inundação causou à população, foi implantado um centro de apoio psicológico voltado especialmente para eles, desde os voluntários carregadores de doações até o prefeito da cidade. Conforme Drª Rosiane conta, e também diversos outros agentes públicos entrevistados, houve momentos que a sobrecarga de estresse era tão grande que muitos se emocionavam diante de tantos sofrimentos alheios. Portanto, para que pudessem cuidar do outro, era necessário primeiro manter-se inteiro, física e emocionalmente.
Segundo a psicóloga, apesar da alta demanda daquele momento e de ter que administrar diferentes situações ao mesmo tempo, de alguma forma o desastre também proporcionou histórias de comoção e alegria. Ela conta que uma jovem grávida e desamparada, que ficou abrigada no Seminário durante algumas semanas, conheceu um rapaz que, assim como ela, havia perdido praticamente tudo que possuía. Pelo convívio diário, ambos acabaram se apaixonando e, algum tempo depois, quando a vida começou a se normalizar, casaram-se. Pelo menos para estes dois, a enchente se revelou como um ciclo de borboletas, reservando-lhes o melhor presente que poderiam ganhar: a dor metamorfoseada em amor.
EM MEIO À TRAGÉDIA, TONELADAS DE DOAÇÕES E SOLIDARIEDADE
A máxima de que é do caos que florescem os jardins mais coloridos talvez se aplique ao que foi testemunhado diante dos efeitos demolidores da grande enchente de 2020. Porque o que ficou mais evidente nos dias que se seguiram ao evento foram a solidariedade, a união e o amor ao próximo demonstrados pela população e até mesmo por quem se comoveu de longe.
No decorrer da sexta-feira 24 de janeiro, antes mesmo da chegada da cabeça d’água, iniciaram-se campanhas para a arrecadação de donativos que se estendeu por várias semanas, mobilizando cidades da região e de outros estados.
A diretora escolar Elizama de Lima Teixeira de Assis, uma das responsáveis pela central de recebimento e distribuição de doações para os abrigos e desalojados, relata que diariamente chegavam toneladas de alimentos e roupas em caminhões vindos de diversos lugares como São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Certamente, graças ao alcance das redes sociais muitos se sensibilizaram e, ainda que distantes, acompanharam o drama vivido por Espera Feliz.
Segundo a diretora Elizama, foram tantas as doações que a quadra do Ginásio Poliesportivo, utilizada como almoxarifado para os donativos, ficou inteiramente recoberta por agasalhos, calçados e cobertores que, mediante um organizado e necessário cadastramento, foram distribuídos junto com cestas básicas a milhares de famílias afetadas pela inundação.
De acordo com o Promotor da Comarca Dr. Vinícius Bigonha Cancela Moraes de Melo, que intermediou a participação da Cruz Vermelha na cidade, este senso de solidariedade despertado pelo ocorrido foi em grande parte responsável pela recuperação de Espera Feliz. Em paralelo, conforme relata o empresário Walacir Alves, que atuou como voluntário e nas campanhas solidárias, o representante da Cruz Vermelha, após avaliar os estragos causados na área urbana, afirmou que só tinha visto algo parecido em locais alvejados por furacões. Por isso, passou de meio para 4 caminhões de donativos cedidos pela instituição humanitária para o atendimento aos necessitados da cidade.
Segundo Dr. Vinícius Bigonha, as doações da Cruz Vermelha foram encaminhadas para o Rotary Clube de Espera Feliz, para que este fizesse a devida gestão de assistência junto à população atingida. Além de alimentos e agasalhos, também foi recebido roupas de cama e água potável. Naquele momento, muitos dependiam do mínimo para recomeçarem suas vidas.
Também somaram força a este movimento de amparo algumas instituições presentes no município, como o Banco do Brasil, que destinou recursos financeiros para que o Rotary Club efetuasse a aquisição de camas e colchões para os desabrigados.
Esta mobilização sem precedentes na história local, juntamente com o esforço da Prefeitura Municipal, da Polícia Militar e de tantos outros heróis anônimos da massa de voluntários resultaram numa eficaz diminuição dos impactos causados pela tragédia. Assim, ao final de 30 dias desde o ocorrido a última família que permanecia acolhida no Seminário foi liberada da situação de abrigo e reconduzida em segurança ao lar. Ainda que abalada, a cidade já se encontrava quase pronta para retomar a sua rotina.
Por outro lado, o carnaval de 2020 precisou ser cancelado pela prefeitura, já que não havia condições nem financeiras nem de espírito para se realizar a folia. Mesmo assim, ainda contagiados pelo mesmo senso de união despertado durante os tempos difíceis, alguns grupos se organizaram e promoveram um carnaval bem diferente daqueles que a cidade estava acostumada. E, exatamente 1 mês após a grande enchente, esta festa serviu para lembrar que, apesar dos pesares, a vida continua e deve ser sempre comemorada.
Farley Rocha é professor de Língua Portuguesa e Literatura das redes pública e privada de Espera Feliz. É cronista do site PortalEF e tem dois livros publicados, Mariposas ao Redor (2011) e Livre Livro Leve (2015).