Cidade Submersa – Capítulo X – Desolação dos Bairros João Clara, Santa Cecília e Rua Nova

Capítulo X da série de reportagens documental "Cidade Submersa".

Publicado em 24/09/2020 - 18:16    |    Última atualização: 24/09/2020 - 18:16
 

CAPÍTULO X

DESOLAÇÃO DOS BAIRROS JOÃO CLARA, SANTA CECÍLIA E RUA NOVA

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As regiões da cidade que mais sofreram com os efeitos da grande enchente de 2020 foram aquelas localizadas próximas às partes mais baixas do leito do Rio São João. Entre elas, os locais com maior densidade populacional são os bairros João Clara e Santa Cecília.

Ao todo, cerca de 320 residências destes dois endereços ficaram inundadas. Na madrugada de 24 para 25 de janeiro, centenas de famílias foram forçadas pela presença furiosa do rio a abandonarem seus lares, precisando se refugiarem nos abrigos instalados onde o desastre não alcançou.

Segundo os moradores, depois que a água recuou e foi possível retornar para casa, o que puderam encontrar foi um ambiente em absoluto estado de desolação e destruição. Praticamente todas as suas mobílias foram perdidas, e muitos que não tiveram tempo acabaram perdendo até mesmo seus automóveis, submergidos dentro das garagens. Além de todas as perdas, os residentes ainda tiveram que lidar com os procedimentos de limpeza após o desastre, removendo toda a lama acumulada desde o chão até o teto.

Contudo, em meio às tristes cenas presenciadas nestes locais, há o relato de um intrigante caso da ave que sobreviveu às mais de 17 horas de inundação. Segundo conta o feirante Bruno Morette, um conhecido seu residente na Rua Nova teve a casa quase completamente submersa. Na correria provocada no decorrer daquela noite, acabaram deixando para trás um periquito de estimação junto de todos os outros pertences. Na tarde de domingo, porém, quando os moradores puderam retornar acabaram descobrindo que o pássaro havia sobrevivido à tragédia. À medida em que a enchente subiu, a gaiola se desprendeu da parede e boiou até o teto. Quando a água baixou, o periquito permaneceu a salvo ilhado no alto da geladeira.

Por sorte ou acaso, o solitário passarinho teve um destino bem melhor do que aqueles outros 200 canários da rua Gomes de Barros. Um pequeno sinal de que, diante de tamanha tragédia, era sim possível manter as esperanças.

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DANOS À INFRAESTRUTURA PÚBLICA

Em todo o perímetro urbano de Espera Feliz há exatamente 9 pontes de concreto e 1 de estrutura metálica (o Pontilhão de Ferro). Pelo menos 6 delas ficaram brutalmente danificadas.

Segundo o Secretário Municipal de Meio Ambiente e Defesa Civil Wagner Villa Verde e o engenheiro da prefeitura Rubens Cabral de Almeida Júnior, as pontes da Rua Nova, da rua Major Pereira, da Terra Branca e do bairro Santa Cecília tiveram que ser interditadas porque a violência das correntezas dilacerou o aterro de suas cabeceiras e abriu largas valas entre elas e a rua, impossibilitando a travessia de um lado para outro da cidade.

(Ponte que interliga a rua Carangola à Rua Nova)

Como estas pontes interligam metade da cidade ao centro, nas semanas que se seguiram o trânsito local ficou extremamente prejudicado até que a prefeitura tivesse condições financeiras e de mão-de-obra para intervir com obras de recuperação e reforma.

Já o Pontilhão, bem tombado pelo Patrimônio Histórico e Cultural e principal via de acesso entre os municípios de Caiana e Espera Feliz, talvez só tenha resistido devido à sua antiga e sólida fundação de rocha construída no início do século XX para a passagem do trem. Engenheiros avaliam que o próprio peso de sua estrutura de ferro contribuiu para mantê-lo intacto. Porém, como ele se encontra entre duas sinuosas curvas do rio, nas proximidades do Patronato, o solo de suas laterais – duas ribanceiras de 6 metros de altura – foi duramente castigado e teve milhares de metros cúbicos de terra erodidos pela passagem da enchente.

Na avenida Beira Rio e nas ruas do bairro Santa Cecília, vários pontos tiveram parte do calçamento danificado, através do desmoronamento das margens do rio em alguns trechos. Contudo, a que ficou em condições mais críticas foi a avenida João Vieira da Costa, que dá de fundos com os depósitos dos supermercados Jacaré e Sacolão. Por estar nas margens de uma grande curva do leito, a ação das águas ruiu um extenso espaço da via, tornando-a intransitável como se o rio tomasse de volta o antigo curso que tinha antes de a cidade existir.

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Até mesmo fora da cidade o Rio São João teve sua calha implacavelmente mutilada. Em vários pontos a enchente escavou até três metros da superfície de seus barrancos laterais, principalmente nas imediações do Patronato e da antiga mineradora da Klabin, no asfalto em direção à Caiana.

O prédio da Prefeitura Municipal e de diversas Secretarias Municipais, muitas delas localizadas na Praça Dr. José Augusto, na região central, perderam incontáveis documentos e equipamentos. Além das instalações deste endereço, vários postos do Programa Saúde da Família, Centros de Referência de Assistência Social e creches, localizados nos bairros João Clara, Santa Cecília, Santa Inês e nas proximidades da rua Major Pereira também foram rigorosamente atingidos.

Por isso, para que funcionários, agentes públicos e autoridades realizassem seu trabalho durante as semanas após à enchente, tiveram que instalar provisoriamente seus setores e gabinetes no abrigo do Seminário, onde se concentrava a maior parte das decisões tomadas acerca do desastre.

DANOS À ZONA RURAL

Segundo o Secretário Municipal de Agricultura Michel de Assis e Silva, que durante vinte dias após o evento comandou um trabalho de vistoria na zona rural do município, os estragos da área urbana ficaram mais evidentes devido à grande concentração de construções residenciais e comerciais da cidade. Mas nas comunidades rurais, por toda a extensão do Vale do Rio São João, muitas localidades também foram consideravelmente afetadas.

De acordo com os Secretários Michel de Assis e Wagner Villa Verde, foram 126 pontes, de madeira ou de concreto, arrancadas em todo a área do município, comprometendo por vários dias o acesso a diversas comunidades. As fortes chuvas daquele período também causaram muitos deslizamentos de terra na região, interditando dezenas de estradas vicinais. O povoado de São Gonçalo, a 20 quilômetros do centro de Espera Feliz, foi o mais prejudicado, onde 6 famílias ficaram desabrigadas.

Além de muitas fazendas e sítios terem sido inundados durante a enchente, também ocorreu a perda de 15 a 20 hectares de lavouras de café devido a desmoronamentos de encostas, já que o relevo da região é composto essencialmente por morros e colinas. Conforme calcula o Secretário de Agricultura, a estimativa é de que o desastre natural de janeiro de 2020 tenha causado um prejuízo de pelo menos 2 milhões de reais para os setores de pecuária e agricultura do município.

ALÉM DE ESPERA FELIZ, OUTRAS CIDADES ATINGIDAS

Como a Zona de Convergência do Atlântico Sul é um fenômeno localizado, diversas outras cidades do entorno do Caparaó também sofreram com o resultado das chuvas desde aquele final de semana.

Foi o caso de Dores do Rio Preto, na divisa de Minas Gerais com Espírito Santo. A mesma cabeça d’água que havia caído na serra na noite de 24 de janeiro também incidiu sobre as vertentes do Rio Preto, que nasce próximo ao Pico da Bandeira e banha o distrito de Pedra Menina e a cidade, antes de se encontrar com o São João nos afluentes do Itabapoana.

Durante toda a noite, o Rio Preto conduziu um volume tão desproporcional de água que várias de suas pontes também foram arrancadas ou danificadas. Inclusive uma de concreto, que interliga Pedra Menina ao povoado esperafelicense do Vale do Paraíso.

Em Dores do Rio Preto, dezenas de casas foram inundadas e em vários pontos as margens do leito ficaram escavadas. Assim como ocorreu em Espera Feliz, os moradores daquela cidade relatam que nunca haviam presenciado uma enchente daquele porte. Diversas famílias chegaram a ficar desalojadas e muitas outras perderam grande parte de seus pertences.

Já do lado mineiro da serra, além de Manhuaçu, Manhumirim e Alto Jequitibá, a cidade de Carangola também foi uma das mais atingidas. Foram quase 2.300 pessoas desalojadas e cerca de 45 desabrigadas. Uma grande porção da área urbana por onde o rio Carangola atravessa ficou inundada. Desde o distrito de Lacerdina, passando pelo bairro Santo Onofre, centro, Praça Coronel Maximiano, adjacências do Terminal Rodoviário e redondezas do Estádio Municipal. Segundo as autoridades, esta foi a maior enchente desde os anos de 1980.

Em relação à parte serrana, o Rio Caparaó, principal afluente do São João, também provocou diversos estragos antes de chegar à Espera Feliz. Moradores de Alto Caparaó, cidade que recebeu primeiro a descarga da cabeça d’água, fizeram vídeos no início daquela sexta-feira que mostravam a violência das enxurradas ultrapassando a parte superior das pontes e alagando diversas ruas e bairros. No entanto, como a maior parte do perímetro urbano é construído sobre um terreno inclinado, talvez tenha contribuído para que o grande volume da enchente escoasse com mais rapidez. Mesmo assim, além de muitas casas terem sido inundadas, pelo menos 3 pessoas foram fatalmente vitimadas na zona rural do município, no Córrego Bragunça. Uma enorme encosta que desceu durante a madrugada arrastando milhares de pés de café acabou soterrando por completo uma casa onde viviam um jovem casal e seu filho de três anos de idade.

(Casa soterrada no município de Alto Caparaó)

CONSEQUÊNCIAS DO DESASTRE EM CAPARAÓ E CAIANA

A cidade de Caparaó foi outra que sentiu com as graves anomalias meteorológicas de janeiro de 2020. Embora sua parte mais povoada não seja banhada pelo Rio Caparaó, vários pontos do município tiveram inúmeros estragos com o transbordamento do Rio Fama e deslizamentos de encostas, tanto nas áreas rurais quanto em seu centro urbano.

Segundo o professor Wellington de Souza Silveira, morador do local, pelo menos 4 pontes que interligam as duas partes da cidade ficaram severamente danificadas pela ação das correntezas que inundaram diversas ruas e casas. Foram cerca de 300 pessoas, entre desabrigadas e desalojadas, que tiveram que permanecer por vários dias acolhidas em abrigos instalados na Escola Estadual Professor Francisco Lentz, nas igrejas Batista e Presbiteriana, e no Pavilhão de Festas.

(Ponte danificada no centro de Caparaó)

De acordo com o professor, Caparaó acabou ilhado a partir daquele final de semana devido aos estragos causados pelas chuvas, já que as vias de acesso ficaram interditadas. As estradas de terra que interligam a cidade à Alto Caparaó e à Espera Feliz foram bloqueadas por diversas barreiras e árvores caídas. E o asfalto que conecta o município à MG-111 também ficou intransitável, devido a uma ponte inteiramente destruída à altura do distrito de Santa Rita.

Moradores relatam que nunca foi visto na região uma enchente tão devastadora quanto esta desde o final da década de 1970.

Distante dali, na região sul do Vale do Rio São João a cidade de Caiana, prima-irmã de Espera Feliz, também foi bastante atingida pela grande enchente de 2020. Embora o curso do leito passe relativamente longe da maior parte da área urbana, várias ruas também ficaram inundadas naquela madrugada, causando transtornos a centenas de pessoas.

De acordo com a professora Mirela de Andrade Silva, residente da rua Jhonatan Rodrigues, por volta das 20:30 horas da sexta-feira 24 de janeiro, os moradores se colocaram em alerta, mediante notícias do avanço da inundação em Espera Feliz e da cabeça d’água que acabava de cair em Alto Caparaó.

Segundo a professora, como o histórico local nunca descreveu enchentes de grandes proporções na cidade, muitos moradores não puderam prever que aquela teria a magnitude que teve. Tanto que às 2:40 horas da manhã, o campo de futebol, situado a cerca de 200 metros da margem direita do rio, começou a ser atingido pelas águas e, até perto do amanhecer, a força das correntezas já incidia sobre várias ruas da parte leste de Caiana.

Mirela de Andrade relata que cerca de 120 famílias tiveram suas casas atingidas sob mais de 1 metro de alagamento, o que acabou gerando dias de trabalho para que efetuassem a limpeza das residências e a reorganização das ruas.

(Ruas inundadas no centro de Caiana)

Conforme outro morador de Caiana, o servidor público Anderson Faria, residente da parte baixa da rua Espera Feliz, o pico da enchente ocorreu durante a madrugada de sexta para sábado, quando o fluxo do leito chegou a ultrapassar a altura da ponte distante a apenas 20 metros de sua casa. A certa hora, autoridades da prefeitura e moradores locais disponibilizaram veículos como caminhões e tratores para que a população pudesse retirar seus pertences, enquanto outros apenas suspenderam os móveis.

Já na zona rural do município, no distrito de Divininho cujo Rio São João cruza toda a extensão do pequeno povoado, a grande enchente de 2020 também castigou duramente os moradores, deixando a maior parte das casas inundada.

Quanto à Espera Feliz, depois de avaliados os danos e contabilizados os prejuízos, restava à população preparar-se física e emocionalmente para remover os escombros e reerguer a cidade de suas próprias ruínas.

Sobre o autor

Farley Rocha é professor de Língua Portuguesa e Literatura das redes pública e privada de Espera Feliz. É cronista do site PortalEF e tem dois livros publicados, Mariposas ao Redor (2011) e Livre Livro Leve (2015).


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