Cidade Submersa – Capítulo VIII – O Centro de Espera Feliz Submerso

Capítulo VIII da série de reportagens documental "Cidade Submersa".

Publicado em 22/09/2020 - 11:42    |    Última atualização: 22/09/2020 - 11:44
 

CAPÍTULO VIII

O CENTRO DE ESPERA FELIZ SUBMERSO

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Por motivos lógicos, os locais de maior incidência de inundação sempre foram os endereços mais próximos ao rio. Mas a grande enchente de 2020 subverteu completamente esta regra. Tanto que por volta das 4:30 horas da manhã o centro da cidade também foi tomado inteiramente pelas águas.

Desde a parte baixa da avenida Fioravante Padula até a Área de Lazer, mais de 20 ruas ficaram alagadas, algumas sob mais de 2 metros. As primeiras a serem atingidas foram as paralelas à Praça Dr. José Augusto e a rua Henrique Gripp Filho. Em seguida, as ruas da região do antigo Laticínio, entre o rio e o Seminário.

Antes do amanhecer, a Prefeitura Municipal, agências bancárias, mercados, bares, lojas, padarias e todos os pontos comerciais do Calçadão e das ruas adjacentes já estavam rodeados pela água, que chegou a atingir até mesmo os primeiros degraus da longa escadaria da Matriz.

(Em frente ao Morro da Matriz)

O avanço da enchente no centro de Espera Feliz foi visto dos apartamentos, sacadas e terraços numa espécie de insônia coletiva. Cada janela acesa atravessou a madrugada esboçando vultos preocupados com o olhar voltado para baixo.

Somados à apreensão que já sentiam mesmo seguros no alto dos prédios, vídeos e áudios que chegavam pelas redes sociais enviados por quem estava em áreas mais críticas geravam ainda mais aflição. Muitos que residiam desde a parte baixa da Praça da Bandeira, passando pela rua Américo Vespúcio de Carvalho, até à região da Rua Nova fotografavam e filmavam o mesmo fluxo de enchente que chegava aos residentes das ruas próximas ao Calçadão e Seminário.

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Mas, ilhados, restava a todos apenas esperar, aprisionados em seus apartamentos por mais 12 longas horas até que baixassem completamente as águas.

(Rua adjacente à Praça Dr. José Augusto)

OS PONTOS NUNCA ANTES INUNDADOS

No meio da agitação dos que retiravam às pressas seus veículos das garagens, entre outros que se arriscavam na correnteza ao atravessarem as calçadas, não demorou muito para que diferentes locais do centro também fossem atingidos.

Pouco depois do amanhecer a enchente já havia deixado sob quase 2 metros de água todas as instalações e jardins da Área de Lazer e as dezenas de casas e comércios ao seu redor, até bem próximo à antiga Rua Vermelha. Do outro lado, na parte final da rua João Sebastião de Amorim, o soldador Alencar de Oliveira, morador da Rua Nova e que estava refugiado no apartamento de familiares em frente ao Estádio Municipal, diz ter ouvido um grande e assombroso estrondo. Ao chegar à janela do apartamento de frente para a rua, a esta hora inteiramente inundada, viu que uma parte do estádio havia desabado pela força das correntezas. Um muro de 5 metros de altura e quase 15 de comprimento desmoronou, deixando o campo de futebol submerso de gol a gol.

(Estádio Municipal)

Próximo dali, na rua transversal ao Estádio Municipal, o Promotor da Comarca de Espera Feliz Dr. Vinícius Bigonha Cancela Moraes de Melo, que monitorava a situação em contato direto com o prefeito e o Tenente da Polícia Militar, relata que ele e sua família permaneceram ilhados no segundo andar desde às 2 horas da manhã de sábado, devido à inundação que causou diversos estragos no andar inferior da casa e só permitiu que saíssem no final da tarde do dia seguinte.

Segundo conta, a água os surpreendeu ainda no início da madrugada, depois de acompanhar de perto os desdobramentos da enchente junto às demais autoridades por outros locais da cidade. Por isso, não tiveram muito tempo a não ser salvarem o máximo que podiam e resguardarem-se o mais seguro possível da enxurrada que invadia a casa.

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Já nas proximidades do Calçadão, a enchente primeiro começou a dar sinais pelo gargalo dos bueiros, na parte alta da avenida Roque Ferreira de Castro. O córrego subterrâneo camuflado abaixo dos prédios serviu de vazante para o Rio São João e, com isso, casas e estabelecimentos comerciais do local começaram a se alagar, ainda na madrugada, devido à água regurgitada pelo sistema de esgoto que se conecta à galeria.

Mas antes mesmo do amanhecer, a água que transbordava da ponte Terra Branca já se nivelava a cerca de 2 metros de profundidade com o calçamento da Roque Ferreira de Castro até a altura da rua Pedro Dias Neto, adjacente à Praça Amenaide Vasconcelos Rocha. A parte baixa das ruas José Grillo, Cira Rosa de Assis e toda a extensão da rua Pio XII também ficaram em igual situação.

O servidor público e músico Kevin Heitor, cuja residência fica na esquina das ruas Pio XII e Cira Rosa de Assis, conta que desde às 22 horas da sexta-feira ajudava moradores da Praça da Bandeira a retirarem os móveis. Por volta da 1 hora da manhã, quando retornava para casa, constatou que a avenida Roque Ferreira de Castro estava já parcialmente alagada, mas ainda transitável.

No entanto, às 2:30 horas foi acordado por sua namorada Iara Simiquelli Santos, pois a enchente já havia avançado cerca de 100 metros desde a Roque Ferreira à Pio XII, e sua casa estava prestes a ser alagada. Rapidamente os dois retiraram o que puderam, carregando pertences e mobílias mais leves para o segundo andar do prédio ao lado de sua residência, de propriedade de sua mãe, Jucilene Moreira Amorim. Mas como aquele horário era o mesmo da chegada da cabeça d’água à cidade, não demorou muito para que sua casa ficasse sob 1,75 metro de água.

UM BARCO NA RUA PIO XII

Abrigado no segundo andar do prédio da Rua Pio XII, Kevin Heitor foi prestar ajuda ao casal Mariena e Marco Antônio Labate, residentes na casa do outro lado da rua. Dona Violeta, uma familiar do casal com mais de 90 anos de idade e que estava acamada, precisava ser removida urgentemente devido à inundação que já cobria os degraus do jardim de casa.

(Vista aérea da Rua Pio XII)

Como a situação em vários outros pontos da cidade era igualmente crítica, com muitos moradores para serem acudidos pelas equipes de resgate, Kevin decidiu atravessar a rua a nado para ajudar a senhora. Com o auxílio de outros três homens que estavam nas proximidades, o pedreiro Bruno Viana, o fisioterapeuta Marcelo Alves e o estudante Hugo Belchior, conseguiram transportar a aposentada em segurança para o segundo andar de uma edícula nos fundos da residência do casal. Enquanto isso, sua namorada Iara estava sendo resgatada por amigos de seu pai que chegaram até ela remando sobre um colchão inflável.

Como a água havia subido ainda mais quando Kevin retornou à rua, tornou-se arriscado nadar de volta ao apartamento onde sua mãe estava. Mas logo que amanheceu, um voluntário que transitava pelo local num barco a remo conseguiu chegar até onde ele estava, no gradil do jardim de frente para a rua, e o transportou para longe da inundação, no único ponto seco próximo entre as ruas José Grillo e Cira Rosa de Assis.

Ao relembrar o ocorrido, Kevin diz ter sido uma cena inacreditável ver um barco navegando em plena Rua Pio XII.

CORRENTEZAS NA RUA JOÃO SEBASTIÃO DE AMORIM

Com mais de dois terços da área urbana de Espera Feliz já submersos, os moradores ilhados testemunhavam o grau de devastação da grande enchente através dos objetos que ela arrastava rio abaixo. Centenas de botijões de gás, sofás, geladeiras e até telhados eram vistos descendo pela superfície expandida e lamacenta do São João, por entre ruas, casas e prédios.

Por volta das 9 horas da manhã de sábado 25 de janeiro, a parte alta da rua João Sebastião de Amorim, nas imediações da Praça Pedro de Oliveira, também foi tomada pela enxurrada. Testemunhas relatam que, devido seu declive, a rua se transformou num curso de verdadeiras corredeiras, com fortes correntezas que ultrapassavam 60 centímetros de profundidade e ameaçavam arrastar os carros estacionados nos acostamentos, espalhando troncos, galhos, latões de lixo e bancos de madeira sobre as calçadas.

Neste momento, uma das maiores preocupações era com o prédio do Seminário, cujas instalações abrigavam centenas de famílias refugiadas do desastre. Àquela hora, a enchente já encharcava a parte externa de suas robustas e características paredes amarelas. No entanto, como o piso do primeiro andar do edifício está construído acerca de mais de 1 metro de altura em relação ao nível da rua, seu interior não chegou a ser atingido, permanecendo em segurança todos os desabrigados, voluntários e profissionais da linha de frente que estavam dentro dele.

Até que às 10:30 horas da manhã a cheia enfim estabilizou, trazendo um misto de alívio e descanso para aqueles que passaram a noite acordados no isolamento de seus apartamentos. Porém, a partir daquele instante ainda levaria mais 6 horas até que as águas recuassem completamente e a população pudesse retornar às ruas.

Certamente, todo evento catastrófico de grandes proporções marca a vida de todos que o presenciam. É como se cada vítima, socorrista ou testemunha projetassem pelo olhar uma câmera capturando diferentes perspectivas de um mesmo filme. No caso da grande enchente, os que a viram de perto guardarão para sempre cada detalhe e cada sentimento despertado por ela, como espectadores e personagens de uma única e inesquecível história.

No final da tarde do sábado 25 de janeiro o que pôde ser visto após a passagem da inundação foi um cenário extremamente caótico e desolador. Depois de quase 24 horas bombardeada pela enchente, a sensação era a de que a cidade havia desmoronado em ruínas. Para todo lado Espera Feliz se apresentava desfigurada.

Sobre o autor

Farley Rocha é professor de Língua Portuguesa e Literatura das redes pública e privada de Espera Feliz. É cronista do site PortalEF e tem dois livros publicados, Mariposas ao Redor (2011) e Livre Livro Leve (2015).


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