CAPÍTULO V
NOITE DE VIGÍLIA À ESPERA DA ENCHENTE
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A partir da meia-noite de 24 para 25 de janeiro, como vários pontos de Espera Feliz já se encontravam alagados, muitas pessoas, apreensivas, permaneceram acordadas com um olho na janela, observando o rio, e outro na tela do celular, acompanhando as notícias que chegavam em tempo real.
Muitas delas, aproveitando a estiagem depois de quase 24 horas de chuva ininterrupta, saíram às ruas para fazerem o que habitualmente chamam os locais de “vigiar a enchente”. No começo daquela madrugada, pequenos grupos se aglomeravam na boca das pontes da região central da cidade, especialmente nas pontes da rua Major Pereira, da Terra Branca e do Bairro Santa Cecília.
Em Espera Feliz é comum que, em épocas de cheia, as pessoas fiquem até tarde da noite nestas três pontes observando o comportamento do rio e a intensidade da inundação. Como suas estruturas de concreto de engenharia antiga são robustas e altas em relação ao leito, elas funcionam ao mesmo tempo como porto seco e espaço de convivência entre os cidadãos. Por interligarem as duas margens da cidade, muitos se reúnem sobre elas para compartilharem notícias e inevitáveis olhares de preocupação.
Nestes três locais o Rio São João transcorria em caudalosas correntezas a quatro metros acima do normal. A esta hora, com a água já atingindo a viga inferior das pontes, seu retângulo maciço formava uma espécie de aparador de destroços trazidos pela enchente. Geladeiras, sofás, tábuas e árvores despedaçadas iam represando o fluxo, expulsando cada vez mais o leito para as laterais. A cada cinco minutos, os que vigiavam as corredeiras barrentas precisavam dar um passo para trás no calçamento da rua, para não terem seus pés encharcados.
No mar, quando um navio está prestes a afundar os ratos abandonam seus esconderijos. Mas em terra firme, quando há o prenúncio de uma enchente a vista, são as cobras, os sapos, os besouros e outros insetos invisíveis quem saem em debandada de suas tocas, nos matagais das margens. Próximo às pontes, pequenas multidões dessas minúsculas criaturas se formavam rente ao chão, sob a luz nublado dos postes, lutando pela própria sobrevivência.
Do outro lado do São João, na direção oposta ao centro da cidade, o entroncamento da avenida Roque Ferreira de Castro com a rua Major Pereira já se encontrava parcialmente inundado. De longe, moradores eram vistos transitando sob os postes com água perto da cintura, carregando objetos sobre os ombros na tentativa de salvarem alguma coisa.
Entre as pontes da Terra Branca e Major Pereira, justamente onde o rio faz uma grande curva, um enorme volume d’água se formava em um refluxo remanso nos terrenos de fundos da Praça Dr. José Augusto e da parte baixa da avenida Fioravante Padula. Parecia que o rio buscava novamente seu antigo curso, antes de ser transplantado pelas obras de dragagens de quase quarenta anos atrás.
A esta altura, muitos moradores do bairro Santa Cecília e avenida Beira Rio também já haviam sido expulsos de casa pela inundação que, progressivamente, embrenhava-se pelas portas e janelas.
DAS PIORES ENCHENTES DE QUE SE TEM NOTÍCIA
Devido às características geográficas do Vale do Rio São João, não é raro que hajam alagamentos em épocas de muitas chuvas, principalmente nas áreas rurais onde o leito quase sempre corre ao nível da superfície do solo, desviando-se dos morros. A exemplo do vargedo onde se localiza São Sebastião da Barra. Em especial durante os meses de verão, o rio costuma se espalhar por boa parte da pastagem plana ao redor.
Já em Espera Feliz, uma grande extensão da área urbana foi projetada por sobre baixadas que acompanham o leito do rio. É por este motivo que em seu histórico de eventos importantes, há enchentes que marcaram o imaginário coletivo da cidade.
A mais famosa é a de 1979. Alguns a descrevem como a maior já ocorrida até então. A região da Rua Nova, a rua Major Pereira, um longo trecho da rua Henrique Gripp Filho, e o terreno onde hoje se localiza a Praça Dr. José Augusto ficaram parcialmente submersos.
Falam que naquele tempo, como era comum ter criação doméstica de galinhas no fundo dos quintais, quando a enchente chegou muitos bichos foram levados junto aos móveis, roupas e bicicletas dos que não tiveram tempo de retirá-los. Fotografias antigas tiradas do alto dos morros mostram uma grande mancha fluida cor de cerâmica sobre a cidade, movimentando-se num aluvião de toras, copas de árvores e bois arrastados por quilômetros desde as distantes roças.
À época, funcionava em Espera Feliz a Barbosa & Marques, uma antiga indústria de laticínios da região. A parte de trás de seu terreno divisava com a linha do rio, na margem oposta à direção da rua Major Pereira. Ali havia instalada uma grande pocilga anexa à empresa. Contam que quando as águas subiram, centenas de porcos e leitões foram tragados enchente abaixo. E por muitos dias depois seus cadáveres puderam ser vistos boiando na beira do rio, por dezenas de quilômetros, até bem para baixo do município de Caiana. Esta cena haveria de permanecer na memória de muitos esperafelicenses como um símbolo sombrio deste desastre do passado.
Embora também tenha sido um evento de grandes proporções, há quarenta anos a cidade não chegava à metade do que é hoje. Muitos dos endereços que atualmente são drasticamente afetados pelas cheias, como os bairros João Clara, Santa Cecília e a avenida Beira Rio, eram todos praticamente despovoados. Deste modo, se comparadas, a grande enchente de 2020 superou em volume e poder de destruição, pois esta atingiu locais que a outra não chegou nem perto.
Para que calamidades semelhantes fossem evitadas, em meados da década de 1980 a Prefeitura Municipal executou uma grande obra de dragagem do rio por todo o perímetro urbano. Como possuía muitas curvas, teve seu curso transplantado em alguns pontos para se ajustar à linha reta das ruas e liberar espaços para a construção de casas – especialmente na rua João Vieira da Costa, à altura dos fundos dos supermercados Sacolão e Jacaré. Por isso, com o leito mais largo e profundo, presumia-se haver menos chances para que o rio transbordasse, mesmo com um volume maior de chuvas.
A CONSTATAÇÃO DO DESASTRE
No início da madrugada de sábado 25 de janeiro a população de Espera Feliz se dividia em três categorias: a dos atingidos pela enchente, a dos não atingidos e a dos que trabalhavam incessantemente para manterem a salvo os residentes das principais áreas de risco e o funcionamento do abrigo do Seminário.
Por isso, um grande número de funcionários da prefeitura, militares e dezenas de voluntários atuavam em mutirão emergencial tanto no abrigo quanto na operação de evacuação dos bairros João Clara, Santa Cecília, Patronato, avenida Beira Rio e nas regiões da rua Major Pereira e Rua Nova.
Segundo relata o Prefeito Municipal João Carlos Cabral de Almeida, que nesta hora acompanhava os desdobramentos das operações da Defesa Civil, da Polícia Militar e do secretariado municipal, deparar-se com os alojamentos do prédio do Seminário lotados de desabrigados significava que a cidade estava prestes a sofrer uma terrível turbulência. Por isso, era preciso manter a serenidade para coordenar os trabalhos e atender à população no que fosse preciso.
Para o Prefeito, um dos momentos de maior apreensão foi quando se reuniu naquele dia com o Promotor da Comarca de Espera Feliz Dr. Vinícius Bigonha Cancela Moraes de Melo no piso inferior do Fórum, cujo rio que passa nos fundos já começava a inundar as instalações do prédio. De onde estavam, preocupados quanto à segurança da população mediante à destruição que a enchente poderia causar, ambos dialogavam sobre as possíveis soluções que seriam preciso tomar frente à ameaça de um desastre.
Enquanto avaliavam, Dr. Vinícius Bigonha, parafraseando um provérbio sueco, disse ao Prefeito que “em águas calmas todos os navios têm um bom capitão”, prevendo que dali em diante cada agente público, cada autoridade, cada cidadão precisaria ter ainda mais força e garra, pois um importante e necessário trabalho os aguardava pela frente.
UM ÔNIBUS NO MEIO DA NOITE
Conforme relatos dos que trabalhavam na linha de frente naquela noite, famílias inteiras tiveram que deixar suas casas sob o comando de megafones, sirenes e carros de som. A Polícia Militar e equipes da prefeitura conduziam-nas no traslado para os abrigos onde, em segurança, recebiam alimentos, agasalhos e cobertores.
Segundo conta a Secretária Municipal de Assistência Social Alba Barbosa, uma das responsáveis pelo abrigo emergencial do Seminário, e que esteve pessoalmente nos pontos de evacuação desde o início do dia anterior, por volta da 1 hora da madrugada de 25 de janeiro coordenava um dos traslados do Bairro João Clara ao abrigo quando um dos ônibus lotados de moradores precisou desviar a rota de retorno. A parte baixa da rua Américo Vespúcio de Carvalho, nas imediações da Igreja Assembleia de Deus, a um quarteirão de distância do rio, já estava tomada pelas águas, bloqueando o tráfego de acesso ao centro. Como a rua Carangola também estava bloqueada devido a inundação que já tinha atingido a rua Major Pereira, restou ao motorista seguir pela única via alternativa, o Contorno Rodoviário na parte externa da cidade, acima da Praça Cira Rosa de Assis.
Como não haviam mais lugares no ônibus, a Secretária Alba Barbosa precisou retornar em um automóvel baixo, chegando ao abrigo antes dos refugiados. Conforme relata, este foi um momento de grande tensão, pois o ônibus carregado de famílias demorava a chegar no destino. Preocupados e sem conseguirem fazer contato com o motorista, ela e seus companheiros de trabalho precisaram tomar decisões rápidas, já que dezenas de vidas poderiam estar correndo perigo. Imediatamente, auxiliada por sua equipe refez o trajeto alternativo e descobriu que o ônibus, por não haver pavimentação no Contorno Rodoviário, havia ficado atolado na lama provocada pelas chuvas da semana, obrigando os passageiros a terminarem o percurso a pé.
A Secretária acabou os encontrando na parte alta da rua Ernesto Grillo, no local mais conhecido como Trilho, logo após o Lions Clube. Idosos, mulheres e crianças caminhavam debaixo da chuva que voltava a cair na forma de um ralo sereno. Sob olhares atônitos de quem não sabia como seria sua vida no dia seguinte, os passageiros foram encontrados em segurança e reconduzidos em outro veículo ao abrigo.
Aliviados, a equipe pôde continuar o seu trabalho sabendo que, pelo menos até ali, estava tudo bem.
Farley Rocha é professor de Língua Portuguesa e Literatura das redes pública e privada de Espera Feliz. É cronista do site PortalEF e tem dois livros publicados, Mariposas ao Redor (2011) e Livre Livro Leve (2015).