CAPÍTULO IX
UM RASTRO DE DESTRUIÇÃO
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Depois que a enchente recuou, por volta das 17 horas do sábado, os que saíram às ruas para mensurar o tamanho dos estragos se depararam com cenas chocantes e devastadoras. A cidade, que em muitos pontos havia ficado sob mais de 4 metros d’água, apresentava-se como uma verdadeira zona de guerra.
Afundando os pés a mais de 20 centímetros na lama sedimentada no centro e nos bairros, os esperafelicenses percorreram os locais atingidos expressando no rosto um misto de consternação e espanto como se todos partilhassem de um mesmo sentimento de luto. Ao descobrirem casas demolidas, pontes rompidas, ruas escavadas, automóveis empilhados, postes partidos e estabelecimentos comerciais destruídos, pareciam estar diante de uma Espera Feliz varrida do mapa.
Devido ao choque inicial, não teve como a desolação não ser coletiva. Era pouco o número de endereços que permaneceram intactos. Somado à comoção individual pelas próprias perdas, havia também a angústia pelas perdas alheias. Todas as casas estavam reviradas, com móveis pesados bloqueando portas, panelas espalhadas por vários cômodos, vasos sanitários transbordando-se de esgoto, dejetos de capim e lixo depositados nos quintais. Diante do caos, era difícil avaliar a situação de quem estava pior. Até mesmo porque, sob aquelas condições, não havia ninguém, material ou emocionalmente, que pudesse estar melhor.
Segundo o relato do Secretário Municipal de Meio Ambiente e Defesa Civil Wagner Villa Verde, que sobrevoou a cidade na manhã de domingo no helicóptero do Corpo de Bombeiros, ver do alto o estado em que Espera Feliz havia ficado despertou-lhe uma inevitável comoção. Pois daquela perspectiva era possível observar, de um extremo ao outro, toda a dimensão da tragédia.
De acordo com o Secretário, 86% da área urbana foi atingida pelos efeitos da grande enchente, que deixaram 2.226 pessoas desabrigadas e outras 3.100 desalojadas. No entanto, a quantidade dos que, direta ou indiretamente, foram afetados pelo desastre totalizou cerca de 12 mil esperafelicenses. Considerando que o município possui entorno de 25.000 habitantes, praticamente a metade da população ficou prejudicada.
Contudo, como a tarde de sábado já estava perto do anoitecer, a população pouco pôde fazer naquele momento. Restou apenas avaliar os danos, absorver a fatalidade do destino e tentar descansar para a manhã seguinte. Todos sabiam que dali em diante uma longa e inadiável tarefa os aguardava: a de reconstituir os cacos da cidade e junto dela refazer a própria vida.
Segundo o Tenente da Polícia Militar Julierme Machado Christoffori, havia uma grande preocupação quanto a possíveis desaparecimentos. A Defesa Civil, o Corpo de Bombeiros de Governador Valadares e a Polícia Militar, que àquela hora já contava com reforço dos efetivos de Caiana e do 11º Batalhão de Manhuaçu totalizando 40 homens, iniciaram imediatamente os trabalhos pelas áreas atingidas. Como até aquele momento ainda não se sabia se a enchente havia feito vítimas fatais, a população inteira de Espera Feliz permaneceu por várias horas trocando mensagens de celular em busca de notícias de amigos e familiares.
Agora não mais submersa nas águas mas no sentimento de um profundo pesar, a primeira noite do pós enchente transcorreu sob uma amarga e silenciosa escuridão. Como postes ficaram danificados, quase toda a cidade permaneceu sem energia elétrica por mais de 26 horas, até o meio da tarde de domingo.
AVALIAÇÃO DOS DANOS CAUSADOS
Assim que o domingo 26 de março amanheceu, sob um sol entre nuvens que muitos interpretaram como um sinal de otimismo, as autoridades realizaram uma reunião às 6 horas da manhã no prédio do Seminário para avaliarem a dimensão dos danos e decidir quais estratégias seriam planejadas para darem início ao processo de recuperação do município.
A Polícia Militar cuidaria da ordem e das eventuais ocorrências, a Defesa Civil realizaria as vistorias nos imóveis, prédios públicos e infraestrutura atingidos, e o Corpo de Bombeiros acompanharia todas as operações com seus devidos protocolos para desastre, além das equipes de manutenção dos abrigos e de limpeza das ruas e domicílios, que começariam a atuar a partir daquele momento.
Segundo o engenheiro da prefeitura Rubens Cabral de Almeida Júnior, como grande parte da área urbana havia sido afetada, foi preciso organizar uma força tarefa composta por diversos profissionais voluntários – engenheiros formados e acadêmicos – para darem conta da excepcional demanda.
Foram vistoriadas não somente todas as áreas abrangidas pela devastação das águas como também as localizadas próximas de encostas. Por isso, durante toda a primeira semana do pós enchente, além dos bairros João Clara, Santa Cecília, e os demais locais que ficaram submersos, as equipes técnicas também percorreram as imediações das ruas Dom Silvério, Major Pereira, Morro do Waltair, Morro da Igreja de São Francisco de Assis e os bairros Novo Horizonte e João do Roque para averiguarem riscos de deslizamentos. Ao todo, foram vistoriados aproximadamente 1.000 imóveis. Destes, 70% foram liberados, 20% notificados para reforço e 10% demolidos.
Vistos de perto, os estragos que a enchente deixou pela cidade eram traumáticos. No final da rua Capitão José Carlos de Souza, logo depois da ponte, um conjunto de pequenas casas foi posto abaixo pela correnteza do Rio Caparaó, nas proximidades de sua conexão ao Rio São João. As residências ficavam sob um barranco de cerca de 6 metros de altura, na margem oposta à Rua do Salermo. Entre a ponte alta do asfalto e a ponte da Capitão José Carlos de Souza, o Rio Caparaó arremessou o estouro de suas correntezas sobre as casas, destruindo todas elas ao mesmo tempo e atingindo parte de uma oficina automotiva logo em frente.
Já um pouco mais para baixo, na forquilha de encontro dos dois rios a força das águas praticamente varreu a parede dos fundos de várias casas próximas às margens, localizadas entre a rua Carangola e a parte de trás da Rua Nova. Toda a carga da cabeça d’água conduzida desde as montanhas do Caparaó despejaram-se especificamente neste ponto. Quando o leito baixou, a região parecia ter sido devastada por um tsunami.
Ao todo, pelo menos cinco escolas públicas e privadas foram atingidas. As mais prejudicadas foram a Escola Estadual Erênio de Souza Castro, na Rua Nova, o Colégio Portal do Saber, no final da rua Américo Vespúcio de Carvalho, e o Colégio Batista Reobote, localizado na rua Francisco Gomes Monteiro, todos situados bem próximos ao rio. Seus gestores relatam que houve diversos prejuízos, desde a perda de equipamentos e mobílias até arquivos e materiais didáticos. Devido ao imprevisto, por determinação da Secretaria de Estado de Educação o início das aulas precisou ser adiado, não só para que as escolas fossem limpas e reorganizadas, mas também para que a cidade inteira tivesse condições de retornar à rotina.
No Patronato, além de vários imóveis danificados ou arruinados, uma família acabou perdendo a casa não exatamente durante a inundação, mas logo assim que as águas foram baixando. Como a moradia havia ficado inteiramente submersa, uma enorme palmeira arrastada pela correnteza atracou-se sobre o teto. Quando a enchente recuou o peso do tronco acabou por demoli-la, despedaçando tudo o que havia dentro.
Além destes locais, conforme relatos de moradores, testemunhas e do próprio engenheiro da prefeitura Rubens Cabral, um dos lugares mais abatidos pela catástrofe foi a rua Major Pereira. Ali era onde havia a maior concentração de construções da primeira era de Espera Feliz, muitas delas já quase beirando os cem anos. Por serem de arquitetura antiga, diversas casas foram reduzidas a escombros. Principalmente os casarões da esquina com a rua Carangola, ao lado da ponte de acesso à Praça da Bandeira, que foram completamente implodidos durante a madrugada de sábado.
Por toda a extensão da rua haviam carros revirados uns sobre os outros, móveis destroçados pelas calçadas e uma espessa camada de lama, resíduos e detritos recobrindo o calçamento de paralelepípedos. Para muitos, o local se assemelhava a uma espécie de paisagem pós apocalíptica.
Devido a todo este caos, o Prefeito Municipal João Carlos Cabral de Almeida decretou, na manhã de segunda-feira, Situação de Calamidade Pública no município. Este documento, já emitido desde a noite de sábado, garantiria o auxílio por parte de autoridades estaduais e federais para a prestação de socorro e a futura liberação de recursos para a recuperação da cidade.
O CENTRO COMERCIAL ARRASADO
Como o centro comercial de Espera Feliz também ficou inundado, muitas empresas e estabelecimentos, concentrados em maioria na região do Calçadão, tiveram prejuízos astronômicos. Lojas de vestuários, papelarias, bares, restaurantes, padarias, açougues, farmácias, escritórios e os dois maiores supermercados de Espera Feliz tiveram seus estoques destruídos pela lama.
Para quem visse através das portas de vidro o interior do Supermercados Sacolão, era como se um ciclone tivesse revirado todos os seus balcões e prateleiras. Os freezers do setor de açougue e congelados haviam sido tombados pela água e incontáveis mercadorias que ficavam nos fundos do estabelecimento vieram parar no setor dos caixas, perto da entrada, trazidos pelo refluxo das correntezas. Segundo o sócio e diretor de marketing Vanilton Guilherme de Castro Mateus, foi preciso manter o mercado fechado por pelo menos dez dias para reorganizar as coisas, além de arcar com um prejuízo entorno de 3 milhões de reais.
Nas proximidades da Prefeitura Municipal, três das quatro agências bancárias locais também tiveram que suspender suas atividades e passarem por profundas reformas de suas instalações. A Caixa Econômica Federal, o Bradesco e o Sicoob perderam praticamente tudo durante aquela madrugada.
Segundo o diretor executivo da Associação Comercial de Espera Feliz Silvério Lacerda Fernandes, cerca de 70% das empresas de Espera Feliz foram atingidas, entre elas 160 associadas e 260 não associadas. No total, a estimativa de prejuízo foi de cerca de 80 milhões de reais só em valores materiais, fora o período em que tiveram que ficar de portas fechadas para se restabelecerem.
Por conta disso, a Associação Comercial imediatamente empreendeu uma campanha de união e fortalecimento dos comerciantes e empresários, para que mesmo em face do desastre não perdessem os ânimos. Junto à campanha, a Associação também liderou um trabalho de consultoria técnica aos empreendedores atingidos e a mediação entre eles e instituições financeiras para renegociação de dívidas e liberação de empréstimos, chegando a suspender a cobrança de mensalidade aos associados.
No entanto, além dos danos causados ao comércio, a enchente também trouxe incalculáveis perdas materiais à população e enormes estragos à infraestrutura pública de Espera Feliz.
Farley Rocha é professor de Língua Portuguesa e Literatura das redes pública e privada de Espera Feliz. É cronista do site PortalEF e tem dois livros publicados, Mariposas ao Redor (2011) e Livre Livro Leve (2015).