A igreja já se encontrava vazia. A missa das sete havia terminado há cerca de vinte minutos. A noite se fazia plena sobre as majestosas montanhas de Espera Feliz, e as estrelas, espalhadas naquele negrume noturno, pareciam aproveitar o extasiante silêncio para contar seus segredos àqueles que as contemplassem. Pela porta lateral do templo da Igreja de São Sebastião que dava para o pátio onde se realizavam as movimentadas quermesses, percebe-se o entrar cauteloso de uma sombra magra e pequena. A criatura aproxima-se da mesa central sobre o altar-mor e silenciosamente arrasta uma das cadeiras usadas pelos ministros durante o culto católico. Dessa vez, havia conseguido um alicate para tentar cortar o resistente fio de arame que sustentava a sofredora figura de Nosso Senhor na cruz.
Estava quase conseguindo, quando ouviu os passos de alguém que se aproximava. Era o senhor Tião Ferreira, humilde religioso, responsável por fechar a igreja todas as noites de domingo, quando o templo permanecia algum tempo aberto após a missa, não se sabe muito bem o porquê, acredita-se que, em tempos antigos, alguns fiéis nele permaneciam para reflexões mais solitárias diante do sacrário, ou mesmo para se penitenciarem dos pecados cometidos na semana que havia findado. O fato é que a tradição se formara, e tradição não se questiona nem se discute, se aceita e pronto. Desde então, mesmo não havendo mais nenhum penitente no templo após a missa, senhor Tião aguardava catolicamente a nona badalada do sino para se dirigir à estreita e única porta que até aquela hora permanecia aberta para, enfim, fechá-la.
A criaturinha, ciente de não poder mais fugir, procurou logo esconder-se debaixo da grande mesa branca, sabendo que passaria toda aquela noite na mais completa e sagrada escuridão. Não poderia realizar o que desejava, não pelo breu que se formara após o apagar dos lustres, mas porque não teria como deixar o templo pela manhã, durante a faxina diária, carregando a pesada imagem que tinha quase o seu tamanho pelas ruas da cidade. Teria mesmo que esperar o próximo domingo para mais uma vez tentar concretizar o que já havia se tornado uma santa obsessão…
De manhazinha, dona Fatinha achou estranho aquela cadeira exatamente debaixo da cruz de Nosso Senhor. Mas, entre tantas coisas que nos parecem estranhas nas religiões, que importância teria uma cadeira aparecer num lugar onde nunca estivera? Nenhuma, responde-nos a razão imediata.
Os dias voam, e, novamente, padre Afonso inicia o sermão com a Casa cheia, relembrando, dessa vez, a passagem bíblica do Bom Ladrão, que, mesmo diante da mais árdua provação, confiara no Senhor, descobrindo, ali mesmo, no Gólgota, aos olhos da morte, o caminho para o paraíso da consciência tranquila, enquanto que o outro, revoltado diante de tamanho sofrimento, blasfemara contra o Mestre, dizendo: “Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós também.”
Atrás da última fileira, formada por alguns jovens irrequietos que pareciam mais preocupados com o findar da noite do que com a edificante pregação, dois olhos assustados contemplavam o rosto tristonho e o corpo macerado de Jesus na cruz. Faltavam poucos minutos para uma nova tentativa. Dessa vez, tudo daria certo, havia conseguido um saco vazio de café para ocultar a imagem. O alicate conseguira novamente emprestado na oficina de seu Constâncio, sem ele saber, é claro!, mas devolveria sem falta na segunda-feira, como havia feito na vez anterior.
Terminou a missa… Atrás agora de um dos bancos do belo jardim frente à igreja, cortado por grande escadaria que conduzia ao templo, o pequeno ser pôde observar o último grupo de religiosos deixar o bucólico ambiente, rumo ao carro estacionado no pátio ao lado. Senhor Tião devia estar no salão paroquial, já havia trancado as três grandes portas frontais da igreja. Chegara a tão esperada hora. Correu como um louco e já se viu em pleno altar, puxou novamente a cadeira para perto da cruz e com o alicate afiado conseguiu cortar o primeiro fio que oculto sustentava o Triste Senhor junto ao madeiro. Mas e o outro?! Estava muito alto para o alcance de suas mãos. Não conseguia engatar a boca do alicate. Não teve outra solução a não ser arrastar uma mesinha pequena e redonda que amparava um castiçal prateado. Já se equilibrava custosamente sobre ela e posicionava o alicate para efetuar o corte, envolvendo com o outro braço aquele sofrido corpo para que não descesse bruscamente, quando um grito grave e terrível retumbou nas paredes silenciosas.
– Não faça isso, Chiquinho!!!
Não teve como fugir, o garoto foi imediatamente seguro num dos braços por senhor Tião, quando, já no chão, iniciava apavorado a improvável fuga.
– Padre Afonso, não vai gostar nada disso! Você pirou de vez, menino? Como ousa invadir a Casa de Deus para roubar a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo?!!
Chiquinho foi levado na mesma hora à presença de padre Afonso, que pareceu ouvir tudo com imensa tristeza e seriedade, iniciando a seguir uma fala admoestadora e pausada:
– Que vergonha, seu Chiquinho! Como se não bastasse andar pelas ruas de Espera Feliz dizendo que conversa com os Anjos de Deus, agora resolve roubar a Santa Igreja! Há muito eu digo que esse menino deveria ser conduzido a uma casa de tratamento psiquiátrico, Tião! Ele não é normal…
– Mas Chiquinho nunca fez mal a ninguém, padre! Vive por aí, catando papelão pra vender, desenhando seus Anjos sem asas nas ruas de terra, e alimentando os pombos da praça Cira Rosa com migalhas de pão. Eu nunca imaginei que ele fosse capaz de uma coisa dessa…
– Agora, vocês me darão razão! Esse menino precisa de cuidados médicos, isso sim! Ele já não é mais uma criança, Tião. Como se não bastasse, aqui em Minas, o Chico de Pedro Leopoldo, agora temos um Chico ladrão de igreja em Espera Feliz! Sabia que mais cedo ou mais tarde iria parar de falar com seus Anjos e começar a desenvolver maus hábitos.
Encaminhe-o à assistente social e conte para ela o acontecido.
– Mas, seu padre, eu não queria roubar! – defendeu-se tímido e em baixo tom o garoto.
– Como?! Você entra escondido na igreja essa hora da noite, tenta arrancar Nosso Senhor da cruz e ainda não tem vergonha de dizer que não queria roubar?!
– Eu não queria, seu padre! – reafirmou baixinho o menino dos Anjos.
– Então o que você queria, garoto, fale! – inquiriu severamente o reverendo.
Chiquinho, agora um pouco menos sobressaltado, talvez pela oportunidade de se defender, respondeu-lhe cabisbaixo, olhando fixamente o chão, procurando ocultar de seus interlocutores uma lágrima quieta e quente que descia sobre seu rosto queimado de sol.
– Eu só queria tirar aquele homem da cruz, seu padre, porque ele não está mais morto, nem tem os olhos fechados, nem está mais triste. Ele está vivo, de verdade!, e tem trabalhado muito pra gente ser feliz!
“Os Anjos me disseram isso, seu Tião! Pode acreditar!!! Foram os Anjos que me disseram… Eles me falaram que Jesus está vivo e cuidando de nós!
“Eu só queria fazer uma surpresa pra todo mundo, descendo ele de lá, desenhando outros olhos nele e um sorriso bem bonito no rosto dele, seu padre…
“É assim que ele é! Vivo e feliz!!!
“Mas eu ia devolver, seu padre, pode acreditar! Eu ia devolver!!!”
SOBRE O AUTOR
Rossano Sobrinho é terapeuta, psicopedagogo, educador e autor de 21 livros sobre saúde, educação e espiritualidade. Apresenta o quadro Liberte-se da sua Mente na TV Mundo Maior. Possui um Canal no Youtube onde todas as quintas-feiras, às 21h, apresenta uma live abordando os temas de seus livros. Todas as segundas-feiras, às 19h30, coordena uma reunião de estudo do Evangelho na Sociedade Espírita Paz, Amor e Caridade de Espera Feliz – MG.